sábado, 23 novembro

Tarso Genro (*)

Emplacados, o místico Ernesto Araujo como Ministro de Relações Exteriores  e o colombiano Ricardo Velez Rodriguez como Ministro de Educação, o bolsonarismo completa a simbiose entre o fascismo mitificado – através do controle mental de uma grande parte do “público” pela magia da magna mídia e das redes compradas – e o ultraliberalismo que, para ser aplicado,  precisa destruir a confiança mínima na política e na democracia, que são sempre demoradas e pacientes. As grandes vantagens das tiranias modernas e antigas é que elas têm respostas prontas e se vencem a peleja pelo poder têm a possibilidade de apresentá-las, embora nem sempre sejam as mesmas que se comprometeram nas suas diatribes contra a velha ordem.

O fascismo e o ultraliberalismo não podem esperar. Eles respondem às ansiedades do ódio de classe e aos gemidos do mercado. E colocam, no íntimo de cada um, sempre um símbolo mitificado da inconformidade para destruir a razão. Emplacados  – estes dois ministros, juntos com Paulo Guedes sem alma – desenham uma arquitetura original de dominação política e social. Ela ainda não foi experimentada na democracia continental: a integração política do fascismo -militarista e estatista nos velhos tempos – com o ultraliberalismo econômico, que só é capaz de operar se tiver a confiança da sociedade civil -leia-se- hoje, dos investidores nacionais e internacionais que “financiam” a dívida pública e a classe média alta rentista.

Seria risível, se não fosse trágico, o esforço que fazem os quadros políticos do sistema Globo – hoje em meia desgraça com o ascenso das TVs ligadas às religiões do dinheiro – para fazer a oferta de um mínimo de racionalidade no comportamento da sua “criatura”. Mas é impossível, ela é a mesma que emergiu na cena pública, não pelos seus méritos como político de extrema-direita, mas por ter expressado parte da consciência odiosa da população, desiludida com a política, com os partidos e com a sua própria vida miserável, convencida que é preciso matar, torturar, “expulsar” – sem lei e sem limites – para voltarmos a uma vida de paz e de decência que nunca existiu.

Quando se convence a alguém que o passado não é aquele que o “alguém” viveu nos “bons tempos”, é possível desenhar uma utopia do mal que se proponha a resgatar o que não ocorreu, com a simples proposta de eliminar os que são apontados como adversários desta “volta” ao ideal. Nem o regime militar fez disso uma propaganda política, mas o Presidente atual disse – sinceramente – que o Estado deveria ter matado trinta mil e que, quem não gosta deste programa, tem que ser preso, expurgado ou morto. E nada lhe aconteceu. Não foi levado a nenhum Tribunal Judicial e a nenhum Tribunal da Mídia oligopólica, que sequer falou que talvez ele devesse ser submetido a um exame psiquiátrico.

Bolsonaro magicamente passou impune por todas as incitações ao crime que propagou. É um mestre da hipnose coletiva? Não, ele foi a ideia que surgiu com o desmonte do sentido de tolerância  e de democracia, que só poderia emergir no bojo de uma crise moral e política profunda das suas instituições principais, trabalhada com esmero pelos manipuladores da opinião, que decidiram culpados e orientaram os desavisados em desespero. Hitler, certa vez revelou a um “grupo de íntimos que o fato de estudar numa escola de direito converteria todo o ser racional num idiota completo e que, por sua parte, faria tudo que pudesse fazer, para que as pessoas depreciassem a educação jurídica”.(H.Picker\Ed. – Hitler, 1951, p 211, 213-  I. Müller, “Los Juristas do horror”). E assim o fez, como faz agora Bolsonaro, com a nomeação de um ministro da Educação que pensa que a laicidade é um dejeto do iluminismo e que a educação deve ser uma extensão das suas crenças religiosas.

O mágico Cipolla entra na cidade de Torre di Venere, na Itália – conta Thomas Mann na novela “Mário e o Mágico” (1930) –  anunciando para a cidade “fenômenos de natureza desconcertante e misteriosa”, para cujo anúncio o público se dirige em grande número. Em “Breve consideração estética sobre Mário e o Mágico”,  A. Pandolfo lembra que o hipnotizador e ilusionista Cipolla -segundo o “narrador” fictício do evento –  “brinca perversamente com as faculdades de cada um dos presentes (…) assim questionando os seus sentidos de liberdade e de vontade (…) dominando de forma triunfal o ambiente como um todo, revelando publicamente seu (suposto) domínio sobre a natureza e a realidade”.

O público era o fantoche da genialidade do mágico e a mágica passou ser  o espelho onde as pessoas se revelariam na soturna tristeza daquela cidade fora do tempo e amargurada pela crise.  Era o grande humanista Thomas Mann atacando os contornos de Hitler, que nasceriam das cinzas de Weimer, recuperando a Alemanha lúcida de Goethe, Schiller e Hegel!  Hitler passou e foi para o inferno da História, para onde irão todos os que negam o Holocausto, que defendem a tortura como método inquisitório para obter a “verdade” e que manipulam os seres humanos. Thomas Mann tornou-se o símbolo da dignidade da arte literária e da Alemanha da democracia e todas as próximas gerações o reverenciarão.

Cipolla, no final do  doentio espetáculo chama Mário, um garçom que assistia o evento para hipnotizá-lo. E o faz iludindo-o que, ao beijá-lo, -a Cipolla- Mário estaria beijando a mulher amada. Sob a consternação geral Mário vence a hipnose e rebela-se contra a manipulação do mágico, acertando-o com dois tiros e desmontando o seu corpo, na verdade inexistente. Resta, depois dos tiros, “uma espécie de embaralhado pacote de roupas e ossos contorcidos”.

Uma paródia do fim de Hitler e do nazismo ou uma metáfora dos novos aspirantes ao delírio fascista, dentro do Estado de Direito dissolvido? Ainda não sabemos, mas a resposta só pode vir do lado cá.

(*) Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações Institucionais do Brasil.

 

Fonte: Sul21

Compartilhe