Passo Fundo sediou, na quinta-feira (05/06), no plenário da Câmara de Vereadores, a nona audiência pública – de um total de 12 até o mês de agosto – que buscou debater a implementação do piso salarial da enfermagem e as condições de trabalho dos profissionais da saúde em geral. Organizada pela Comissão Especial da Assembleia Legislativa criada para este fim, e coordenada pelo deputado Valdeci Oliveira, proponente do Colegiado, o encontro contou com a participação de representantes de entidades de classe da enfermagem, lideranças sociais e políticas e profissionais da saúde.
No mesmo dia do encontro, trabalhadores e trabalhadoras do setor da saúde de Passo Fundo haviam realizado uma paralisação das suas atividades, que contou com a participação de profissionais lotados no Hospital São Vicente de Paulo (HSVP) e Hospital de Clínicas. O movimento busca um reajuste salarial de 8% para todos os funcionários ou o INPC (5,32%). O fornecimento de vale-alimentação e melhores condições de trabalho fazem parte da pauta reivindicatória, que vem mobilizando os servidores desde a quarta-feira passada (04/06).
Valdeci destacou que dos pontos trazidos àquela audiência, como o piso e a luta pela jornada de 30 horas semanais, vêm sendo tratados no parlamento gaúcho desde 2012, quando foi constituída na Assembleia Legislativa sua proposta de criação de uma Frente Parlamentar em defesa dessas duas pautas. “A gente não pode permitir que uma categoria absolutamente importante, que é fundamental e determinante em todas as frentes de saúde, sejam elas públicas ou privadas, não seja respeitada e, principalmente, ouvida”, defendeu o deputado.
Aprovada em 2022 pelo Congresso Nacional, a Lei nº 14.432/22 instituiu como piso básico da enfermagem — incluindo técnicos, auxiliares e parteiras — o mínimo de R$ 4.750 a enfermeiros, 70% desse valor (R$ 3.325) a técnicos e 50% a auxiliares e parteiras R$ 2.375. Porém, diversas instituições públicas, privadas e filantrópicas têm interpretado a legislação de forma equivocada, criando dificuldades para que esses profissionais, que envolvem, no RS, cerca de 160 mil pessoas (sendo 85% mulheres), efetivamente recebam o pagamento de forma integral ou correta.
“Foi neste sentido que criamos um movimento que chamamos ‘cuidar de quem cuida da gente”, que resultou nesta Comissão Especial que busca fazer uma radiografia do Estado em relação ao cumprimento do piso salarial, as preocupações, as dificuldades e as condições de trabalho desses profissionais”, explicou. A exemplo das audiências regionais já realizadas em cidades polo como Cruz Alta, Pelotas, Bagé, São Gabriel, São Borja, Cachoeira do Sul, Santa Rosa e Santa Maria, o encontro em Passo Fundo mostrou uma realidade comum: excesso de trabalho e a diferença para se chegar ao piso, que mensalmente é enviado pelo Ministério da Saúde, de acordo com os CPFs informados pelos estados e municípios, sendo pago pelas prefeituras e administrações estaduais como complemento e não realmente integrado ao salário.
Da mesma forma, ficou patente a frustração de toda uma categoria que, além de ter “perdido” valores em relação ao que era pleiteado e o que efetivamente foi negociado como condição para o projeto de criação do piso ser aprovado no Congresso, não vem recebendo o previsto, principalmente por conta de que a matéria, por uma ação da classe patronal, foi judicializada e sua aplicação arbitrada pelo STF, que ainda alterou alguns pontos, dando margem para interpretações diversas.
“A luta sempre foi para que o pessoal tenha um emprego só e seja valorizado. O que está acontecendo é que temos muitos profissionais saindo da área. Antigamente isso acontecia mais com o pessoal da copa, da cozinha e da higienização. Hoje a grande maioria que pede demissão dentro de um hospital é de profissionais da enfermagem, pois não se sentem mais contemplados dentro da profissão, principalmente por conta dos baixos salários, sobrecarga de trabalho e assédio moral para darem conta de tudo (o que precisa ser feito). Há uma defasagem de pessoal, pois ninguém mais quer fazer o curso. E isso é preocupante, pois quem vai cuidar da população doente? O piso precisa ser incorporado ao salário-base”, cobrou Maria Tedesco, diretora do Sindisaúde de Passo Fundo.
Segundo a dirigente, desde que a lei foi aprovada, há três anos, os trabalhadores e trabalhadoras da saúde de Passo Fundo não têm, na prática, aumento de salário, pois tudo o que é conquistado a cada dissídio coletivo vem sendo, na prática, descontado do complemento, diminuindo o seu valor. “E não estamos apenas reivindicando salário, mas condições de trabalho e mais profissionais para, além de trabalho digno, haver um melhor atendimento dos pacientes”, afirmou.
A carência de pessoal também foi abordado pela conselheira do Coren/RS Fernanda Luiza Borkhardt, lembrando ser esta uma realidade preocupante em nível mundial. “A OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e a OMS (Organização Mundial da Saúde) trazem um alerta especial para o Brasil, que precisa sanar as suas dificuldades com a enfermagem, como a baixa remuneração. Precisamos concretizar o piso na folha de pagamento desses profissionais de forma urgente. A verba está disponível, mas há muita discrepância nos pagamentos”, frisou.
De acordo com os dois organismos internacionais, a quantidade de pessoas graduadas em enfermagem por 10.000 habitantes sofreu significativa queda nos últimos anos. Nas Américas, entre 2018 e 2023, o índice caiu de 81 para 24 profissionais por 10.000 habitantes. Borkhardt citou ainda a importância da PEC 19/2024, em tramitação no Congresso Nacional, que busca atrelar o piso a uma jornada de 30 horas semanais, sem redução de salário e reajuste anual.
“É vergonhoso ainda termos o piso atrelado a uma carga horária de 44 horas semanais. Há muito tempo a OMS emitiu parecer de que ideal, para que os profissionais de enfermagem não tenham riscos físicos e mentais, são 30 horas por semana. A sociedade precisa tomar consciência dessas dificuldades da profissão, pois com o envelhecimento da população, mais profissionais são necessários. E está ocorrendo justamente o contrário”, sustentou, lembrando ainda que a realidade diária da enfermagem, técnicos e auxiliares é composta também por agressões nos locais de trabalho.
“A PEC 19 é a grande alternativa para que tenhamos segurança no futuro”, completou Valdeci. Já na avaliação de Milton Kempfer, presidente da Federação dos Empregados em Estabelecimento de Serviços de Saúde no RS (Feesseers), para garantir dignidade aos trabalhadores da é preciso mudar o sistema de custeio (atualmente feito a partir de tabela e produtividade) e não apenas aprovar uma lei, mas ela ser respeitada e cumprida.
“Com muito sacrifício conseguimos aprová-la, mas da forma como foi feito deu chance para o setor patronal entrar na justiça, e o STF, ao invés de apenas dizer se era ou não constitucional, legislou sobre o tema, (praticamente) acabou com o piso e determinou que o pagamento fosse feito no limite do complemento do governo federal. Ou seja, o Supremo descompromissou as entidades filantrópicas, os municípios e os estados de cumprirem a lei”, explicou o dirigente.
A fiscalização do cumprimento ou não da legislação foi apontado pela deputada estadual Laura Sito como um dos desafios para a sua implementação. “Muitas instituições, principalmente as de caráter privado, burlam a lei. Sabemos que a saúde é (uma área) custosa e que os problemas que ouvimos quando (entidades) buscam emendas parlamentares são reais, mas precisamos garantir a condição dos profissionais que estão atuando na ponta. Infelizmente, o conjunto de ações de fiscalização é ainda muito limitado”, avaliou, acrescentando à lista a situação financeira alegada por muitos municípios, o que seria um reflexo da não aplicação, por parte do governo estadual, dos 12% da receita corrente líquida em ações de saúde pública.
Estudos demonstram que o executivo gaúcho, por meio de subterfúgios contábeis, tem investido no máximo 9% na área, deixando de aplicar cerca de R$ 1,2 bilhão por ano no segmento. “Temos muitos colegas adoecendo mentalmente, gastando com psiquiatra e remédios controlados para conseguirem trabalhar. É uma necessidade urgente termos o respeito pela nossa profissão, pois cuidamos de pessoas e recebemos a exigência, correta, de oferecermos um tratamento humano aos pacientes. Mas aqueles que deveriam cuidar dos funcionários com humanidade não o fazem. Temos sobrecarga de trabalho e em muitos postos os funcionários não têm tempo de tomar água, de ir ao banheiro e nem lanchar. É um estresse, é horrível, pois a demanda é muito grande para poucos funcionários. Essa é uma luta de todos, pois não conseguiremos tratar humanamente um paciente se nós mesmos não tivermos esse tratamento”, declarou Ana Laura de Castro, técnica de enfermagem do Hospital Municipal São Vicente de Paulo.
De acordo com Valdeci, além das audiências públicas que estão sendo realizadas no Estado, visitas técnicas a hospitais e diálogo com profissionais de todas as regiões estão ocorrendo para entender onde estão os entraves para o cumprimento da legislação. “Nosso objetivo é construir um relatório robusto, com encaminhamentos reais às autoridades competentes”, pontuou. Também participaram da audiência pública Adilson Szymanski, presidente Sindisaúde de Erechim; o vereador Edson Nascimento, representando o Legislativo municipal; as vereadoras Eva Valéria Marina Bernardes; Ismael Miranda e João Gilberto Santos, dirigentes do Sindicato dos Enfermeiros no Estado do RS (Sergs), além de representações dos mandatos da deputada federal Maria do Rosário e dos estaduais Miguel Rossetto e Luciana Genro.
FUNCIONAMENTO DA COMISSÃO – De acordo com o Regimento Interno do Parlamento gaúcho, a Comissão Especial tem prazo de quatro meses de funcionamento, período em que colhe informações, finalizando sua atuação com a apresentação de um relatório – previsto para agosto próximo – com sugestões e indicativos a gestores públicos, estado e, se for o caso, à própria União tanto para o cumprimento da legislação como por garantia de condições dignas de trabalho.
Texto: Marcelo Antunes (MTE 8511)
Foto: Christiano Ercolani