A postura de Bolsonaro contra a ciência, recomendando o uso indiscriminado da Cloroquina e propagando a inutilidade da máscara e do isolamento social, é concretamente genocida. As reformas econômicas de Guedes, que vão gerar mais riqueza no topo e muito mais miséria na base da sociedade, vão no caminho de mais desigualdade, mais doença, mais miséria. Ambas se completam na sua união amoral, assimiladas e promovidas pela maioria da mídia tradicional (para que as reformas sejam feitas) compõem a mais formidável guerra contra os pobres travada no país, desde o fim da escravidão.
Lembremos a história recente. Na pacata cidade de Iena – na Turingia – um tropel de cavalos faz Hegel sair ao balcão da sua casa, interrompendo suas leituras. Quer ver Napoleão à frente do Exército -junto com seu Estado Maior- desfilar em direção ao acampamento no arredores da cidade. É 9 de outubro de 1806 e logo o “Corso” vai derrotar as tropas do Imperador Frederico Guilherme III, que abriria -segundo Hegel- “o último estágio da História de nosso mundo, de nossa época”. A frase atribuída a Hegel sobre Napoleão, “eu vi a razão a cavalo”, faz todo o sentido”, no conjunto da sua monumental obra filosófica, que abre um novo ciclo na filosofia da época moderna.
Os homens e mulheres de cultura do período assumiram suas “responsabilidades” perante aquele momento da história alemã. O mesmo ocorre aqui no Brasil, perante o Governo Bolsonaro: lá uns eram indiferentes, simplesmente “negando” o momento como “épico” e considerando Napoleão um mero “conquistador”, como muitos aqui consideram Bolsonaro um inocente, apenas destinado a viabilizar as reformas ultraliberais que defendem; outros – aqui como lá – não tomam conhecimento das ameaças, medrosamente, porque se sentem perdidos pelo “globalismo”, cujo remédio defensivo seria o nacionalismo verbal e rastaquera de Bolsonaro, contra todo o mundo externo, menos contra Trump; outros constatam e afirmam: o acontecido – tanto aqui como lá – são fatos históricos, políticos e militares, que decidirão os rumos do futuro e do próprio Estado, com as suas possibilidades de grandeza e perversidade.
O aspecto mais perverso da racionalidade moderna e do seu Estado “total” aparece por inteiro no Século XX, depois da Primeira Guerra e após a derrota da Revolução Alemã. A razão iluminista traz os Direitos do Homem, o sufrágio universal, a proteção social para incorporar a “plebe” industrial na sociedade de classes, a legitimação – mais tarde – das lutas revolucionárias anticoloniais. Mas junto com ela vem a “era da técnica” supostamente neutra, o filisteísmo nacionalista agressivo e um novo sentido de nobreza (racial) para explorar e segregar. Este lado odioso da razão sem humanismo conquista por inteiro a Alemanha dos anos 30 e vai bater às portas da França. É a Segunda Guerra.
Em 10 de maio de 1940 Hitler inicia a ocupação da França e Paris cai, em 14 de junho, com o apoio de uma parte pequena do povo francês e de parte significativa das suas elites. Majoritariamente o país resiste em nome da Revolução de 1789, em nome da pátria e da liberdade, luta que logo forma uma ampla maioria política no país. A oposição ao desastre de Bolsonaro e à ocupação do Estado, pelo seu grupo de extrema-direita, é mais complexa, porque ele se constituiu eleitoralmente como líder extremista no poder e foi, paulatinamente, formando uma ampla base social reformista ultraliberal. E ela corresponde aos anseios da maior parte do empresariado nacional e internacional, com apoio -para as reformas- da maior parte do espectro político dos partidos tradicionais.
Sloterdijk, o filósofo alemão atual da “coimunidade” (prestem atenção no “i”), no momento da Pandemia defensor do “compromisso individual voltado à proteção mútua” – que segundo ele marcaria a “nova maneira de estar no mundo” – já estava presente no debate histórico, nos primeiros anos deste século, em oposição -nada mais nada menos- a Jürgen Habermas. Para que se tenha noção da radicalidade do debate avalie-se apenas o título de três dos artigos em questão, na “Revista de Occidente” (edição de maio de 2000, n..228) fundada por Ortega y Gasset: O artigo de Thomas Assheuer alega que “El filósofo Peter Sloterdjik reclama uma revisão genético-técnica da humanidade”; Ernst Tughendhat ataca: “Não há genes para a moral. Sloterdijk desloca a relação entre ética e técnica genética”; José Luis Molinuevo pergunta se o filósofo da engenharia genética defende o “Fim do humanismo?”. A estes e outros, o filósofo da “coimunidade” responde na entrevista da mesma publicação, com a pergunta nada modesta: “Sou um monstro sagrado?”.
A obra de Sloterdijk, segundo seus críticos mais duros como Habermas, levaria a entender que a melhor possibilidade para a construção dos indivíduos numa sociedade organizada e “livre” (na visão da sua utopia científico-filosófica), seria uma integração da filosofia com a engenharia genética para, processualmente, depurar as doenças e deformidades que atrapalham a espécie humana. Essa necessidade de integração da técnica com a filosofia estaria comprovada pela falência dos sistemas educacionais públicos e privados – originários dos parâmetros do iluminismo democrático – que legaram à sociedade a atual distopia.
Em função do que escrevera, um entrevistador questionou Sloterdjik de forma direta, depois do filósofo reclamar das distorções da mídia sobre a sua obra: “Die Zeit e Der Spiegel criticam que você defende uma ‘joint venture’ entre filosofia e engenharia genética, em consequência a favor de uma nova elite: praticamente os senhores da seleção?”
A obra do filósofo – segundo ele mesmo- poderia ser mal interpretada e levar às conclusões dos seu detratores, que a identificaram com a eugenia racial do nazismo, o que ele nega frontalmente, pois – assevera – nunca tivera “a intenção de interferir no debate da tecnologia genética”. Disse ele: “Nunca tive a intenção de interferir no debate da tecnologia genética. Há outros que podem fazê-lo melhor.”
Trata-se aqui de verificar a responsabilidade do indivíduo-filósofo perante o Tribunal político do humanismo moderno (Kant, “ninguém pode usar o outro como instrumento”) e a responsabilidade do filósofo perante a própria teoria política, referida ao Estado Moderno (Hegel, “o Estado é a realidade da liberdade concreta”).
A “desculpa” de Sloterdjik perante os efeitos da sua filosofia -“nunca tive a intenção”- tem o mesmo conteúdo moral cínico de responsabilidade “negativa”, daquela responsabilidade “positiva” assumida nas alegações de Heidegger, quando este concordou com a expulsão dos Professores judeus da Universidade de Friburgo, em 1933. Dizia ele que sacrificou os judeus para poder ajudar “outros” perseguidos, dentro da instituição.
Sobre a questão da responsabilidade parece que Habermas com 24 anos (1953), muito antes da filosofia-engenharia de Peter Sloderjik, já respondera ao silêncio dos princípios, tão usado durante o nazismo, num texto que diz tudo: “Pensando com Heidegger contra Heidegger”. Neste texto ele defende que a recusa à autocrítica possibilita que o silêncio contamine a filosofia, dizendo que é sim, “possível, também ‘interpretar’ o assassinato planejado de milhões de pessoas, do qual hoje já não ignoramos nada, como um erro que nos foi apresentado como destino…”
Hoje o Brasil é o exemplo radical da decomposição humanismo das luzes, o que explica a possibilidade de termos na gestão do Estado pessoas como Weintraub, Ernesto Araujo e Damaris, que além de exalarem um ódio medieval a tudo que é humano e contemporâneo, gostariam de poder matar com suas próprias mãos a cultura da modernidade, por eles denominada como “marxismo cultural”. São responsáveis por eles, não só os que adotam o “silêncio dos princípios”, mas também os que vendem democracia em troca das reformas ultraliberais.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
Fonte: Sul21