Tempos difíceis, estes, de Covid-19 (coronavírus). Estamos vivenciando uma completa irresponsabilidade do governo federal, do presidente Bolsonaro (sem partido), que está banalizando vidas – como se fossem meramente números soltos. Então, o primeiro gesto – neste artigo – é dizer que vidas importam. Cada pessoa, infelizmente morta, tem uma história, uma família e tinha um lugar nesse mundo. No dia em que o país ultrapassou as mil mortes diárias, o presidente fez um vídeo debochando sobre o uso do medicamento hidroxicloroquina, inclusive ideologizando o debate “quem é de direita usa cloroquina, quem é de esquerda toma tubaína” – fazendo alusão a um refrigerante à base de guaraná, típico do interior de São Paulo. Este medicamento, aliás, sequer tem comprovação científica de seu uso, e experiências internacionais demonstram os riscos da utilização desse remédio, salvo em casos específicos. Grande número de pesquisadores(as), entidades, inclusive científicas, tem se posicionado contra a forma como o governo federal vem conduzindo o debate sobre este remédio. Não se pode, de fato, submeter a população a riscos de um tratamento medicamentoso sem comprovação científica de sua eficácia. Isso pode conduzir a população a perigos inimagináveis, devido – por exemplo – aos efeitos adversos do medicamento.
Nos encontramos em um momento de negação da ciência e dos números. Seja no governo federal, estadual ou municipal, nesta análise, referindo-se ao estado do Rio Grande do Sul e ao município de Porto Alegre. Afinal, qual a finalidade de uma pesquisa (e, portanto, da própria ciência), se ela não for utilizada para o bem da população? Quais são os objetivos das pesquisas – em se tratando da covid-19 – senão o maior deles, a intenção de salvar vidas do nosso povo? Parecem perguntas com respostas óbvias, mas não para os governantes neoliberais, autoritários e negacionistas. A falsa dicotomia do debate entre saúde, economia e renda (o que deve estar a frente, o que é mais importante em um determinado momento), leva-nos ao caminho da morte. Todos esses temas são importantes de devem estar na pauta – e tratado com seriedade – por qualquer governante. A defesa da saúde, da renda e do emprego deve ser permanente em nosso dia a dia. As ações para efetivação do distanciamento social radical deve estar junto com a garantia da renda emergencial básica, bem como da manutenção do emprego de qualquer cidadão, sem qualquer alteração salarial. Logo, a defesa da vida, perpassa por tudo isso.
No Rio Grande do Sul o governador Eduardo Leite (PSDB), optou pela farsa do distanciamento social controlado. Criou um Conselho de Crise para o Enfrentamento da Epidemia COVID-19, onde sequer existe participação do controle social, em especial do Conselho Estadual de Saúde (CES), onde trabalhadores(as) e cidadãos(as) teriam voz – também – para as importantes tomadas de decisões. Essa postura é autoritária. Como não escutar quem vive diariamente a problemática do coronavírus, senão a população? A pesquisa realizada pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), em conjunto com outras universidades, demonstrou, em sua terceira etapa, uma avanço da velocidade de propagação da covid-19 em nosso estado: na primeira quinzena de abril existia 1 caso para cada 2.000 pessoas; já na primeira quinzena de maio estava em 4,4 casos para cada 2.000 pessoas. Ou seja, esse número mais do que quadruplicou.
Esse alastramento, rápido, também é confirmado pelo aumento da quantidade de pessoas com sorologia de anticorpos. O distanciamento social controlado, proposto pelo governador com as conhecidas cores de bandeiras, não está sendo o suficiente para conter a circulação do coronavírus. Isso, sem levar em conta a subnotificação de casos, que pode ser de nove vezes o número dos dados oficiais. Nesse caso, o Rio Grande do Sul teria hoje mais de 30.000 (trinta mil) casos confirmados. A pesquisa mostrou isso, e os números alertam. Embora a ciência nos mostre que não há controle do vírus no Rio Grande do Sul, se observa que – cada vez mais – o governo do estado está afrouxando critérios e abrindo francamente a flexibilização do distanciamento social.
Em Porto Alegre, não vemos um cenário muito diferenciado. O prefeito Marchezan, em novo decreto (19/05) – e em mais uma decisão sem discussão com o Conselho Municipal da Saúde (CMS) e representantes da sociedade civil, trabalhadores(as) – permite a abertura de restaurantes, bares, missas, cultos, shoppings, centros comerciais, estabelecimentos comerciais de um modo geral, etc. Essa abertura é permitida com 50% de ocupação, e algumas outras regras de distanciamento e presença e máscaras.
Com 897 casos confirmados e 26 óbitos (até 20/05), estamos observando uma crescente de casos, sobretudo após reabertura de pequenos comércios e empresas, autônomos, profissionais liberais, etc a partir de 02/05. Ao mesmo tempo que aumenta o número de casos e óbitos, tem se observado aumento da taxa de ocupação de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Atualmente 80,94% dos leitos de UTI adultos (público e privado) estão ocupados. O Hospital Conceição (referência também para a região metropolitana e interior), que é público e utilizado principalmente pela população mais pobre, está com 85,51% de ocupação (aumento de cerca de 10% desde início do mês de maio), que pode ser justificado – também – pela flexibilização do distanciamento social que o prefeito de Porto Alegre vem promovendo.
As UTI também são utilizadas por pacientes vítimas de acidentes vascular cerebral, infarto, politraumatizados (devido a acidentes automobilísticos, por exemplo), entre outras situações. Ao se analisar a taxa de ocupação dos leitos de emergências adultas das Unidades de Pronto Atendimento (UPAS), da capital, observa que se encontra em 76,17% (aumento de quase 30%, comparado com início do mês de maio). Certamente, o coronavírus já está circulando, com intensidade, na região periférica. Neste momento, precisamos pensar na possibilidade, real, de fila única para a regulação de leitos de UTI, por uma questão de justiça social visando a garantia do acesso universal e igualitário.
Ainda não entramos no inverno gaúcho e porto-alegrense. É preciso tempo para a organização dos serviços de saúde. Não há estrutura para as pessoas utilizarem (ao mesmo tempo) os serviços de saúde – em especial os leitos de UTI. Por isso, a importância do distanciamento social. A testagem, para covid-19, tem que ser aumentada, priorizando trabalhadores(as) essenciais e cidadãos(as) com sintomas. É urgente envolver o conjunto da sociedade civil nas tomadas de decisões. A atenção básica – os postos de saúde – tem um papel fundamental nesse sentido, é o serviço público de saúde mais descentralizado, dentro das comunidades, que faz parte do dia a dia da população, onde se cria redes de vínculo, afeto, e cuidados necessários a parcela da sociedade que mais necessita. O prefeito Marchezan não pode continuar com a ideia de demissão de cerca de 1.500 profissionais do Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF), ainda mais em meio a pandemia. Isso é muita irresponsabilidade, é conduzir à morte a população que depende exclusivamente de atendimento nos postos de saúde.
É preciso pensar no povo, defender vidas e nosso SUS público, gratuito e de qualidade. Gestores públicos necessitam ter compromisso com a vida, não se pode negar a ciência e os dados estatísticos. A ciência deve ser um amparo para a tomada de decisão e a pesquisa precisa ser valorizada na sua principal finalidade: a defesa de nosso povo. Não é momento de flexibilizar. É imprescindível manter o distanciamento social radical. Mais do que nunca, garantir que a população mais vulnerável tenha a renda emergencial básica garantida. Não menos importante, a necessidade da manutenção dos empregos. É imprescindível, nesse contexto, que a cadeia de produção possa fornecer à população alimentos/insumos necessários com a finalidade de atravessar a pandemia. Como não existe vacina, ainda, para a imunização de nosso povo, bem como medicamento cientificamente comprovado para a cura, não há outra medida a não ser o distanciamento social radical. Ou é isso, ou é a continuidade da política de banalização de vidas. Indubitavelmente, devemos persistir na primeira opção.
Estêvão Finger é enfermeiro, especialista em Saúde da Família e Comunidade; empregado público do IMESF/Porto Alegre, trabalhador de unidade de saúde. Ex-conselheiro do COREN/RS. Ex-presidente do Sindicato dos Enfermeiros do RS.