Numa das mais concorridas solenidades realizada em 2019 no Parlamento gaúcho, a entrega da Medalha do Mérito Farroupilha ao técnico de futebol Roger Machado, realizada no final da manhã desta sexta-feira (20) na Assembleia Legislativa, foi um momento em que o racismo, o preconceito e a desigualdade social foram colocadas em xeque, desnudadas, desmascaradas pelos oradores e pelo homenageado. “Essa homenagem direcionada ao Roger é também uma homenagem a todos os homens e mulheres do Rio Grande e do Brasil que têm a coragem de se erguer contra a discriminação e o preconceito. Ressalto a palavra coragem, pois para defender essa pauta, uma pauta que não é simpática ao conjunto da sociedade, ao conjunto do Brasil raiz, é preciso ter firmeza, altivez e muita disposição em falar sobre um tema que muitos não querem ouvir”, frisou o deputado Valdeci Oliveira, proponente daquele ato. “A você, Roger, faço um humilde pedido: não esmoreça, não desista, não perca a disposição de falar, de expor e até mesmo de traduzir e de desenhar para a sociedade brasileira o que é o racismo”, acrescentou o parlamentar.
Valdeci ressaltou ainda a ausência de negros e negras nos espaços de poder. “São raros os que se tornam vereadores, promotores, desembargadores, juízes, governadores e presidentes da República. Sou um dos 55 deputados e deputadas estaduais que integram a 55ª legislatura desse parlamento, onde nenhum dos 55 legisladores é negro. E em toda a história da Assembleia, se conta nos dedos os representantes negros que tiveram assento nas cadeiras desse Legislativo”, criticou.
Por sua vez, o homenageado, que estava acompanhado de vários familiares, fez questão de ressaltar que para ele o futebol nunca foi um fim, mas um meio. “Chutar a bola para dentro da rede é apenas uma parte disso. Para alguns política e futebol não se misturam, mas não falo da política partidária, falo de política como a arte de dialogar”, ressaltou Roger, lembrando da sua famosa declaração durante uma coletiva de imprensa, em outubro passado, quando expôs seu posicionamento diante das diversas mostras de racismo no país. “Recebi diversas mensagens pela coragem, mas coragem não é ausência de medo. Nesse momento pelo qual passamos no Brasil, adotar esse tipo de postura é um caminho que não tem volta”, afirmou, sendo muito aplaudido pelo público presente. Na ocasião da coletiva, entre outras questões, Roger pontuou que “na medida que a gente tem mais de 50% da população negra e a proporcionalidade não é igual, a gente tem que refletir e se questionar. Se não há preconceito no Brasil, por que os negros têm o nível de escolaridade menor que o dos brancos? Por que a população carcerária, 70% dela é negra? Por que quem morre são os jovens negros no Brasil? Por que os menores salários, entre negros e brancos, são para os negros?”.
Para Roger, por mais que um problema “não nos atinja diretamente, temos o dever de olhar para aqueles que têm menos. É impossível imaginar que um país que foi construído por uma mão-de-obra escravizada, humilhada e subjugada, cujo modelo se repete hoje em dia de outras formas, ele possa ser de fato uma democracia racial. Para que possamos entender é preciso que olhemos para o passado, dialoguemos com esse passado para corrigirmos o nosso presente”, afirmou, destacando que o Brasil é um país maravilhoso, mas que precisa deixar de negar que o racismo existe. Para o técnico do Bahia, “o pior tipo de racismo é aquele que nos torna invisíveis. Se não dialogarmos, não iremos em frente”, sustentou ao final de seu discurso.
Já a questão do não reconhecimento da intolerância racial no país foi ressaltada por Valdeci, para quem o mito de que não existe racismo no Brasil é tão forte no nosso imaginário que, muitas vezes, não somos capazes de definir situações desse tipo de forma objetiva. “Os brancos brasileiros têm uma imensa dificuldade em admitir que são racistas, embora quase todos conheçam alguém que comungue com esse crime”, afirmou o parlamentar.
Em sua fala, Valdeci também citou alguns dados que demonstram a hipocrisia nacional, que jogam por terra qualquer tentativa de se sustentar que somos uma nação tolerante e demonstram o tamanho do fosso social que separa brancos e negros: 50,7% das crianças brasileiras de até 5 anos que morreram por doenças evitáveis em 2017 eram pretas ou pardas; o analfabetismo entre elas é quase três vezes maior que entre as brancas; a taxa de homicídios entre os jovens negros e pardos de 15 a 29 anos é de 98,5 casos por 100 mil habitantes, contra 34 casos entre os brancos; pretos ou pardos somam 64,2% da população desocupada e 66,1% da população subutilizada do país. Quando o assunto é rendimento médio mensal, o cenário é ainda mais desolador: este, das pessoas brancas ocupadas, foi de R$ 2.796 reais no ano passado, 73,9% superior ao da população preta ou parda. “Parabéns Roger, ninguém solta a mão de ninguém, ninguém solta a mão do povo negro e guerreiro desse país”, finalizou Valdeci, não sem antes citar uma frase da professora, filósofa e ativista norte-americana Angela Davis: “Em uma sociedade racista, não ser racista não é o bastante. Temos que ser antirracistas.”
O presidente da Assembleia Legislativa, Luis Augusto Lara, também participou do ato e afirmou que a entrega do Mérito Farroupilha a Roger Machado, a partir da iniciativa do deputado Valdeci, “dá ao encerramento do ano legislativo um brilho e um simbolismo muito fortes”.
Além de Valdeci e de Lara, também marcaram presença na cerimônia os representantes da Coordenação Estadual do Movimento Negro Unificado, Antônio Matos; da Coordenação Nacional das Entidades Negras, Ivonete Carvalho; da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, Engenheiro Comassetto; do Coletivo Elis Vive, da Secretaria Estadual de Combate ao Racismo do PT, do presidente do Festival Santa Maria Vídeo e Cinema, Luiz Alberto Cassol; além de parlamentares e ex-parlamentares, como Manuela DÁvila e Tarcísio Zimmermann.