Céli Pinto (*)
Não estaríamos muito longe da verdade se afirmássemos que abriram a porta do manicômio e jogaram o Brasil dentro. A simples leitura de uma semana de jornais basta para nos depararmos com uma realidade muito próxima de psicopatias graves.
Foucault, em sua magistral obra História da Loucura afirma: “Num certo sentido, a demência é, dentre todas as doenças do espírito, a que permanece mais próxima da loucura experimentada em tudo aquilo que pode ter de negativo: desordem, decomposição do pensamento, erro, ilusão, não-razão e não-verdade”(2014 [1972], p. 252).
Infelizmente isto não é tudo. O momento político brasileiro é muito mais grave e perigoso para 210 milhões de pessoas que vivem neste país. A demência dos loucos foucaultianos pouco extravasava os muros dos hospitais. Os loucos eram isolados, fechados em seus delírios. Para nós, brasileiros, os delírios deste circo dos horrores terão consequências concretas.
O governo foi tomado por um conjunto de pessoas que são, ao mesmo tempo, profundamente reacionárias, no sentido mais robusto da palavra, que vai além do próprio da extrema-direita. Este reacionarismo combina uma ideologia de caráter fascistóide com duas outras características: um despreparo intelectual completo e um amadorismo constrangedor no que diz respeito à coisa pública, à administração do país e ao fazer da política, tanto interna como externa. O reacionarismo se expressa em obviedades que chegam ao perigoso terreno da galhofa e em profundas intervenções na área educacional, na cultura, nas ciências e nas relações internacionais.
A limitação do pensamento cientifico e filosófico do brasileiro médio é assustadora e isto não é culpa de cada uma das pessoas, mas de um Estado que, ao logo de séculos, pouco se preocupou com a qualidade da educação de seu povo. Quando a maioria dos brasileiros encontra respostas para suas dúvidas existenciais em teologias primárias, que trazem para o discurso cotidiano figuras como o demônio, ou Adão e Eva, abre-se uma avenida para o pensamento reacionário. O trágico disto é que o grupo que está no governo combina um primarismo intelectual assustador com a má-fé neoliberal e encontra, neste rebaixamento do pensar, condições excelentes para pôr em funcionamento o projeto que combina interesses de duas elites nacionais: a dos empresários e a dos militares, com o capitalismo imperial.
Bolsonaro, Dalmares Alves, Velez Rodrigues, Ernesto Araujo e Onix Lorenzoni, cada um tem um papel neste projeto, mas todos dividem algumas características: na política, representam o que há de mais baixo-clero, incapazes de serem respeitados por seu pares, sem nenhuma participação relevante no parlamento a que pertenceram; como profissionais, têm muito pouca qualificação, a advogada Damares foi assessora de um senador caricato; Velez Rodrigues é um desconhecido completo na academia, com uma produção parca e irrelevante, como se observa ao examinar seu currículo Lattes, publicado na página do CNPq; o diplomata é desconsiderado por seus colegas e envergonha o país.
Afora a incultura e a insignificância política, os novos donos do poder sofrem de uma inépcia completa a respeito da administração da coisa pública. Mesmo o guru do neoliberalismo, o ministro da Economia, já deu sobejas provas de sua pequenez intelectual e política. Poderiam ser reacionários, mal-intencionados, mas competentes, o mundo está cheio deles. O grupo no poder supera todas as expectativas. Eles fizeram um primário discurso das escolhas técnicas e o que está se vendo, além da alegria da parentalha, é um desgoverno perigoso, que ameaça a continuidade até das mais simples ações burocrárticas.
Entretanto o Brasil não se esgota aí. Há ainda as oposições políticas, a quem cabe a reação neste momento. Há o PT, com sua longa e importante história dentro e fora do governo, mas também há muita oposição além do PT, tanto à sua esquerda como à sua direita. Nenhum dos polos desta oposição pode se dar ao luxo de ficar lambendo feridas e ignorar a existência dos outros.
O cenário que se apresenta é o de um governo de extrema-direita que parece querer abarcar toda a vida nacional. Por efeito da estreiteza de pensamento, de sua pobreza política e teórica, vem deixando grandes espaços para as oposições, porque – quanto mais fechada e obtusa é sua forma de pensar, mais posicionalidades políticas, culturais, ideológicas e mesmo religiosas ficam de fora. Há um mundo a ver trabalhado pelas oposições.
Neste momento, torna-se urgente articular diferenças, construir alianças, pensar em frentes amplas. 58 milhões de pessoas votaram na extrema-direita, mas não há 58 milhões de brasileiros de extrema-direita. Houve, entre estes, uma parcela da elite e da classe média tradicional antipetista e, mais do que isto, anti qualquer proposta mais igualitária e justa. Porém, a grande maioria que votou em Bolsonaro era formada por gente desiludida, desesperançada, mal informada, que não acreditava ser possível que os que haviam governado até então tivessem respostas para seus reais problemas, especialmente os relacionados ao desemprego e à segurança. Para esta maioria de eleitores, as oposições têm de oferecer uma nova proposta, uma nova leitura do que está acontecendo.
Há uma imperiosa necessidade de as oposições saírem da posição de vítimas, de deixarem de repetir velhas e desgastadas palavras de ordem. Estamos frente a um governo que tem no mesmo ponto sua força e sua fragilidade: no simplismo, no anti-intelectualismo, na irracionalidade, nas soluções fáceis, nas frases feitas. Se isto é um facilitador, também é a sua fragilidade, pois, muitos grupos, muitas perspectivas político-ideológicas, muitos projetos econômicos ou educacionais, muitas propostas de reforma política, tributária, entre outras, muitas políticas públicas de educação, de segurança ficaram fora deste discurso mambembe.
As oposições e a maior delas, o Partido dos Trabalhadores, com seu grande líder preso, têm razões de sobra para estarem atônitas, mas não têm muito tempo para continuar assim. O futuro do país não está somente nas mãos de uma extrema-direita algumas vezes às portas da demência, também está nas mãos das oposições, na capacidade de se articularem e construírem uma frente ampla para começar a enfrentar o desastre.
FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
(*) Professora Titular do Departamento de História da UFRGS.
Publicado em Sul21 no dia 13.01.2019