A detenção de um homem negro vítima de agressão chamou atenção da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos. O episódio, ocorrido no sábado (17/02), foi amplamente registrado por transeuntes que passavam pelo bairro Rio Branco em Porto Alegre. Conforme testemunhas, o motoboy Everton Henrique Goandete da Silva foi atacado por um homem branco, residente no bairro, com uma faca, enquanto aguardava a chamada para uma entrega. Ao chegar no local, a Brigada Militar, mesmo alertada por testemunhas, imobilizou e conduziu a vítima algemado, enquanto o agressor se retirou, trocou de roupas e guardou a arma branca utilizada no ataque, sendo depois conduzindo tranquilamente na viatura. Os policiais justificaram que o motoboy cometeu o crime de desacato à autoridade.
Everton foi ouvido pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos, nesta quarta-feira (21/02), na reunião conduzida pela deputada Laura Sito. A parlamentar ressaltou a gravidade do episódio e a reincidência de casos de abordagem policial de pessoas negras no Rio Grande do Sul. Para Laura, o episódio envolvendo a prisão de dois homens produziu uma imagem que percorreu o país e merece reflexão. “Essa cena envolve duas situações, um homem negro, imobilizado, com as mãos para trás, algemado, enquanto outro sorri e conversa livremente com os policiais. Essa é a cena que nos traz a oitiva do sr. Everton”.
A presidente da Comissão ilustrou sua fala com dados de 2023 da ONU sobre Segurança Pública que demonstraram que 79% das abordagens policiais na Região Metropolitana de Porto Alegre foram de homens negros, jovens, tatuados, utilizando boné. Laura também lembrou do Anuário de Segurança Pública que apontou os jovens negros como as principais vítimas de violência policial.
“Não há registro das policias do Rio Grande do Sul, sobre o componente de cor, nas prisões realizadas. Isso é algo significativo nas subnotificações para que nós possamos entender a dimensão dos dados. Nós não temos nem divulgados pela Secretaria de Segurança os indicadores de racismo, como é publicizado nos dados de violência contra a mulher. Essa falta no processo de transparência, leva a invisibilização do racismo estrutural e traz profundas consequências na elaboração de políticas públicas”.
Em seu depoimento, Everton contou que enquanto aguardava com outros dois colegas entregadores, do outro lado da rua, num ponto onde os motoboys como ele, recebem os pedidos de entrega de alimentos, documentos e pequenos objetos, percebeu a aproximação do morador, um homem idoso, vestindo apenas um calção que o atacou no pescoço com uma faca. O trabalhador contou que conseguiu desviar do ataque por muito pouco.
A advogada de Everton contou que seu cliente, apesar de ser vítima de uma agressão grave, foi conduzido à delegacia e tomado seu depoimento, não como vítima, mas como agressor, com base numa percepção racista dos policiais envolvidos no episódio. Clarice Zanini disse a defesa está focada na diferenciação de tratamento da polícia. Ela questionou como que o agressor que portava uma faca pode ir até a sua casa, guardar a arma, trocar de roupa e ser convidado a entrar na viatura, enquanto Everton foi algemado e trancada no camburão. Para advogada não basta afastar os policiais, é preciso responsabilizar quem comanda a operação e instruir os servidores a agirem dessa forma.
Para a presidente do Conselho Nacional de Direitos Humanos, Marina Dermman, que acompanha o caso, o episódio não é isolado e o Rio Grande do Sul tem apresentado casos reincidentes de racismo estrutural institucional ao longo dos últimos anos. Dermman informou que ao oficiar o governador Eduardo Leite cobrou a aplicação de medidas de combate ao racismo estrutural nas instituições, discutidas há quatro anos, sem que nada tenha sido implementado. Marina também destacou que há um fato novo que amplia ainda mais a gravidade, a Polícia Civil indiciou a vítima como agressor.
A secretária-executiva do Ministério da Igualdade Racial, Roberta Eugênio, em participação virtual na reunião, afirmou que o que apareceu nas filmagens do episódio é recorrente em todo o Brasil. Roberta ressaltou a necessidade de uma formação antirracista dos policiais e reforçou a instalação de câmeras nos uniformes dos policias. “É uma forma de melhorar o serviço, não é para constranger, é para nos certificarmos que há o cumprimento devido da lei. Onde já foram instaladas, como em São Paulo, os resultados foram positivos. Além das câmeras, os processos formativos são fundamentais, nós precisamos que o Estado modifique a forma de lidar com as pessoas negras.”
Sofia Cavedon, deputada que preside a Comissão de Educação e Cultura, cobrou da Brigada Militar um pedido de desculpas pelo episódio e salientou que a atitude seria educativa, na relação do Estado com os cidadãos. Para a parlamentar, a instituição policial precisa se formar e criar outros protocolos. “Enquanto as instituições negarem, enquanto protegerem, enquanto postergarem de dar respostas, não haverá uma decisão institucional de mudar os protocolos e realizar ações afirmativas para que a meninada negra não se sinta alvo das operações.”
A deputada Laura Sito informou que a Comissão vai acompanhar o resultado do relatório da Corregedoria da Brigada Militar e que a Comissão vai criar um instrumento de monitoramento da violência policial no Rio Grande do Sul. A parlamentar também afirmou que houve problemas de protocolo, no registro da ocorrência e que a Comissão vai oficiar a Polícia Civil e reunir para tratar do tema.