Modelo de privatização prisional adotado pelo Governo Leite é alvo de críticas de entidades

 

Fazer uma representação solicitando ao MPC e o TCE fiscalização sobre o negócio que está sendo feito no presídio de Erechim. Também elaborar um manifesto de autoridades de entidades gaúchas contrários a essa medida e fazer com que chegue ao ministro Flavio Dino. Também construir uma agenda com o Depen, para pegar relatos de experiências de terceirizações em outros estados. Entregar também um documento ao BNDES, que é o garantidor das linhas de crédito. Esses foram os encaminhamentos tirados da audiência pública promovida pela Comissão de Cidadania e Direitos Humanos nesta segunda-feira (6) por proposição da deputada Luciana Genro (PSOL) e do deputado Jeferson Fernandes (PT), para debater a privatização de presídios gaúchos proposta pelo governo de Eduardo Leite.

O deputado Jeferson lamentou a ausência do secretário de Sistemas Penal e Socioeducativo, Luiz Henrique Viana no debate e afirmou que o decreto nacional autorizando a concessão para a iniciativa privada do sistema penitenciário causou preocupação. “Essa assinatura não só tem a simbologia forte que merece ser discutida sobre a forma como vai ser tratado em cada estado, mas tem a preocupação do BNDES financiar as empresas que acabam recebendo a concessão do benefício e mais do que isso, essas empresas além de ter financiamento a baixo custo, acabam tendo benefícios sociais”, disse o deputado.

Valendo-se do decreto, o governador Eduardo Leite se antecipou e já colocou Erechim como a primeira penitenciária a ser entregue ara a inciativa privada. “O governo do estado oferece 233 reais por pessoa presa de diária, fora o que ela vai receber a título de lucros com o trabalho prisional.  Se aumentar de 600 para 1.200 presos, esse valor aumenta para R$ 400”, relatou. Hoje o custo do sistema prisional, segundo o deputado, é bem menor do que o estado está oferecendo para a iniciativa privada. “As experiências mundo afora dão conta de que se trabalhar só com esse viés, não temos resultados positivos. Passa-se inclusive a justificar o aprisionamento em massa para que a empresa continue lucrando”. Jeferson defende a regulamentação da profissão do policial penal.

O deputado Leonel Radde afirma que em 2017, quando o Brasil foi tomado por uma onda de rebeliões, decapitações, o processo iniciou em um presídio privatizado. “Os neoliberais sempre venderam a ideia de que tudo poderia ser privatizado, menos saúde, educação e segurança porque aí eles poderiam prestar um bom serviço nestas áreas, mas agora um dos pilares deste tripé está sendo colocado de lado em prol de uma lógica econômica. Eu chamo a atenção para o processo de terceirização com uma mão de obra pouco qualificada que recebe mal e uma alta rotatividade”, disse.

Segundo o deputado, há hoje servidores concursados que fazem concursos difíceis e que estão recebendo uma remuneração aquém do que é justo, mas ainda assim maior do que o terceirizado. “Sabemos que é um fator relevante em relação à própria corrupção em si. Isso já é um fato comprovado. Aqueles que estão numa situação de vulnerabilidade são mais facilmente cooptados em relação a compra do seu serviço, de deixar entrar alguma coisa. E quem é que controla essas terceirizadas?”, questionou, acrescentando que a direita está propondo no Senado o encarceramento de usuários de drogas e isso vai estourar no sistema prisional.

Para Luciana Genro, o sistema é reprodutor das desigualdades da sociedade e da lógica da escravidão. Quando se dedica a evitar a privatização, se está levando em conta todo esse contexto. “Na convicção de que a privatização vai ser vendida para a população como solução para os problemas da segurança pública, do encarceramento em massa quando na realidade o objetivo é abrir um novo leque de negócios, a mercantilização da vida”.  A deputada lembrou também que existem experiências internacionais que demonstram que a privatização não é solução para o sistema penitenciário. “O encarceramento não pode ser um negócio muito menos um negócio lucrativo porque à medida em que se torna um negócio, evidente que o encarceramento em massa poderá aumentar ainda mais”.

 

 

Representantes da sociedade repudiam proposta de Parcerias Público-Privadas

 

A professora de Direito da Universidade Católica de Pelotas, Cristhine Freire, pontuou que é desagradável para os ativistas terem recebido a notícia do decreto que permite a privatização do sistema prisional. O projeto de Erechim, segundo ela, já existia no governo Bolsonaro e agora será tirado do papel. “O estado do RS foi escolhido para esse projeto piloto. Aquelas áreas das quais ninguém quer, nós vamos oferecer para a iniciativa privada para tentar conter alguma animosidade e garantir acordos”. O pior, contudo, segundo a pesquisadora, todas as privatizações já saem o valor do preso em 3,8 mil por mês. “Só que a de Erechim sai em R$ 6.900 por mês para cada preso. Se gastarmos esse valor no final do ano, são R$ 8,4 milhões se a cadeia estiver lotada e se formos olhar 30 anos daria R$ 2,5 bilhões”, alertou. Conforme a professora, no leilão apenas uma empresa interessada apresentou proposta para assumir o presídio de Erechim. “Há uma falta total de transparência e o Tribunal de Contas deve ser nosso principal interlocutor”, defendeu.

Atuante na execução penal, Mariana Muniz, em nome da Defensoria Pública do Estado, disse que participou de inspeções em estados aonde existe parceria público privada ou sistema de cogestão. “No Amazonas, que foi um lugar que inspecionai, em 2017 tivemos um dos tantos massacres que ocorreram dentro do sistema penal”, relatou, revelando a preocupação a partir da notícia do decreto federal. A Defensoria Pública, segundo Mariana, se uniu a diversas entidades que juntos confeccionaram uma nota técnica sobre a privatização que foi entregue aos ministérios da Fazenda e da Justiça e Segurança Pública. Mário Rheingantz, da Adpergs, também disse que os defensores são contrários à proposta de privatização por todas as perspectivas. Desde os direitos humanos até as perspectivas mais pragmáticas.

Os trabalhadores do Sistema Penitenciário foram representados por Saulo Felipe Basso Santos, presidente do Sindicato dos Policiais Penais (Sindipen), que disse que a posição da categoria é completamente contra a privatização do sistema. Segundo ele, a diferença dos valores gastos com a iniciativa privada é 3 vezes e meia maior do que é gasto com o sistema público. “Com esse recurso que nós vamos bancar para Erechim, poderíamos construir duas penitenciárias em Sapucaia e uma em Porto Alegre”, exemplificou. O governo, disse Saulo, está tomando como projeto para a área de execução penal investir somente em uma casa prisional.

Rogério Mota, presidente da Apropens, relatou que na época em que ele ingressou no sistema havia uma perspectiva e a clareza da existência de uma política prisional no estado. “Tínhamos a clareza da importância do desenvolvimento, do aperfeiçoamento e do investimento em cima de cada servidor e todo o sistema”. Hoje, segundo ele, a questão política deste governo reproduz a política prisional do Estado de São Paulo dos últimos anos, quando houve um desmonte do sistema prisional. “Lá quase não existem técnicos. Vemos aqui uma reprodução porque o governador se baseia no modelo que tem como centro o estado de São Paulo, fazendo o ajuste fiscal, desmantelando o serviço público”, disse.

Para Rodrigo Puggina, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RS, está havendo uma involução. Não se oferece sequer uma proposta de privatização que represente economia para o Estado. “Parece que agora o sistema econômico está preocupado com as pessoas que estão presas”, ironizou. Segundo Puggina, há uma falta de transparência porque não se tem acesso às informações sobre como de fato se dará a privatização. “Quando a gente vai colocar na lógica econômica na ponta do lápis esses valores, se percebe que em 30 anos, em um investimento de R$3,2 bilhões para gerar 1.100 vagas em um projeto mais retrogrado do que se discutiu em governo passado que queria criar 3 mil vagas por um valor mais baixo. Ou seja, o que justifica estes números?”, indagou.

A Pastoral Carcerária esteve representada pela irmã Marta Maria que afirmou que em nome da vida, são contra qualquer mercantilização que não é do sistema prisional em si, mas da pessoa. “Quando nós tornamos a pessoa uma mercadoria, talvez nós devamos nos perguntar que tipo de civilização nós temos ao nosso redor e da qual nós fazemos parte”, provocou. A Pastoral, segundo a irmã, não trata apenas do aspecto religioso. Ela ultrapassa o limite da fé. “O trabalho dos técnicos pode ser desmantelado com uma possível privatização do sistema. Sem esse trabalho, não anda nada”. A religiosa lembrou também que é obrigação do Estado manter o cidadão.

A questão política e ideológica foi abordada por Lucas Pedrassani do Conselho Estadual dos Direitos Humanos. Segundo ele, a partir do momento da precarização dos serviços penitenciários e com a separação do que é dever do estado, tem-se algo que sirva meramente de instrumento em nome do aumento da margem de lucro e isso coloca a sociedade em um lugar incômodo. “Me parece que é assumir a incapacidade de gerir a garantia de direitos e a própria segurança pública como tutela, que vai desde as ruas até a execução penal. É o estado decretar o seu próprio fim porque a partir do momento em que a gente transforma isso como valor, no sentido mercadológico da coisa, que interesse se tem no desencarceramento?”, questionou.

“Ninguém nasce criminoso”. A afirmação é da psicóloga da Cadeia Pública de Porto Alegre, Ana Paula de Lima , que falou que o sistema penitenciário é a extensão do processo de escravização no nosso país. “Por que existem países fechando prisões e nós queremos prender mais? Por isso não podemos compactuar com a privatização. Temos que chamar o governador para debater porque os números são escandalosos e as experiências em outros países comprovam que não dá certo”.

Claudio, vice-presidente do Sindipen, questionou o interesse de se implantar o modelo de prisões privadas além do econômico. Para ele, o interesse do empresário é meramente econômico, por isso o estado não deveria entregar uma função social que é sua para um terceirizado. Segundo ele, hoje se gasta diariamente R$ 64 por preso. No modelo privado, será R$ 233, conforme o contrato. “Todo mundo fala que para ter socialização tem-se que ter uma casa prisional com 300 apenados. O projeto do governo é fechar 50 casas prisionais e criar mais nove cadeias neste modelo privado. Vão jogar os apenados em grandes estruturas para assim gerar lucro às empresas privadas”.

 

Texto: Claiton Stumpf – MTb 9747

Fotos: Joaquim Moura