A Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa debateu hoje (31) em audiência pública a situação das pessoas portadoras de fibromialgia, síndrome reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) cujo sintoma principal é a dor, que pode fazer parte de várias doenças, o que dificulta o diagnóstico. Com 270 mil portadores da síndrome no RS, o grupo majoritário veio de Santa Maria e apontou a rotina da doença, que impõe dores severas no corpo, mas como não provoca incapacidade, joga os portadores no limbo da invisibilidade quando buscam seus direitos legais na Seguridade Social e até mesmo nos locais de saúde.
O tema foi proposto pelo deputado Valdeci Oliveira (PT), que acolheu sugestão do grupo da FibromialgiaSM, de Santa Maria. Nos encaminhamentos, depois de quase três horas de audiência, Valdeci sugeriu a descentralização e regionalização do Centro de Especialistas em Referências Multidisciplinares, e acompanhamento dos resultados de estudo científico que está em andamento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, conforme relatou o médico Wolney Caumo. Além de fortalecimento do Sistema Único de Saúde, também encaminhou pela criação dos centros de referência pelo Poder Executivo, conforme consta na lei estadual aprovada pela Assembleia (Lei 15.606/21), e apoio aos dois projetos de lei sobre o assunto que tramitam no Congresso Nacional.
Na Sala João Neves da Fontoura, a audiência debateu as dificuldades enfrentadas pelos portadores de fibromialgia, uma comunidade que sofre a invisibilidade da doença, que provoca fortes dores disseminadas em diversas partes do corpo, mas que são de difícil diagnóstico e, em função disso, os portadores alternam diferentes especialidades médicas. Eles carregam o peso da invisibilidade porque em geral não se enquadram na condição de pessoas com deficiência ou incapacidade, o que gera dúvidas até mesmo no acolhimento dos serviços de saúde.
Do grupo FibromialgiaSM, Vera Conrad iniciou o depoimento ilustrando sua situação de saúde com os argumentos escritos no papel, pois uma das características da doença é a perda da memória. Ela é pesquisadora do assunto e em breve vai concluir a pós-graduação em geografia na Universidade Federal de Santa Maria, com o foco nos elementos do clima na fibromialgia. Discorreu sobre os efeitos da dor permanente, sem trégua, com o surgimento de outras doenças, como depressão, em virtude do esgotamento e das limitações que vão impondo aos portadores a exclusão do convívio profissional e social. Também repercute nessas pessoas o fato de a sociedade desconhecer a doença, o que gera desconfiança quando os portadores reclamam das dores, mas não aparentam debilidades, como a maioria das enfermidades. “É uma síndrome que atinge o sistema nervoso central, mas não aparece em exames, e não tem condição inflamatória, apesar do organismo entender como se tivesse”, e atinge especialmente as mulheres. “Em média 24,3% das pessoas abandonam o trabalho após 5 anos do diagnóstico, e as demais trabalham em precárias condições físicas e psicológicas, e têm altos custos com as medicações”, além de realizarem o dobro de consultas médicas. Vera pediu que a lei estadual seja cumprida como forma de amenizar o sofrimento dos portadores da doença implacável.
O neurocientista Wolney Caumo, professor titular da UFRGS, chefe do Serviço de Medicina, médico do Hospital de Clínicas e colaborador da Associação Nacional de Fibromialgia e Doenças Correlatas (ANFIBRO), é um dos quatro pesquisadores da América Latina sobre a fibromialgia, e realiza estudo com fibromiálgicos para apurar o perfil desses pacientes e consequente tratamento inclusivo. Existe um projeto-piloto que permitirá traçar uma política de saúde específica, uma vez que o país não dispõe de estudo ampliado sobre o tema, e um ensaio clínico vai envolver 400 pessoas com a doença, para identificar reação à medicação. Ele afirmou que é um diagnóstico perigoso porque a doença é multifacetada, mas reconheceu que as equipes multidisciplinares deveriam ser mais assertivas, e manifestou preocupação com o despreparo que chega até os pacientes.
Sensibilizar os profissionais de saúde – Do Departamento de Atenção Primária e Políticas de Saúde da Secretaria Estadual da Saúde, Fernanda Torres Carvalho disse que o estado tem atenção para o aspecto biopsicossocial, com incentivo às unidades de saúde para que tenham atenção grupal. Através da Rede Cuidar, que financia as Unidades de Saúde, para que tenham equipes multiprofissionais, com foco biopsicossocial para todas as doenças. A fibromialgia se enquadra nesse aspecto, explicou. E afirmou que é preciso sensibilizar os profissionais de saúde na rede SUS e em outros espaços.
Pelo Departamento Estadual de Regulação, Márcia Lopes, que é portadora da síndrome, observou que a multiplicidade de impactos na pessoa impõe um tratamento multidisciplinar, e também mudanças na legislação voltada às pessoas com deficiência, “esse conceito de deficiência está ultrapassado, não podemos ter políticas públicas que restrinjam as pessoas com deficiência pela aparência, e o fibromiálgico é um exemplo disso”. Ela sugere evolução desses regramentos em seus conceitos a respeito de deficiência e incapacidade. Outra observação foi para o fato de que em algumas regiões há falta de especialistas, como neurologistas e até mesmo ginecologistas e pediatras, porque os prestadores de serviço e profissionais não estão disponíveis para trabalharem pelo SUS, embora a secretaria de Saúde tenha os recursos.
De Cachoeirinha, Karen Luzie Souza da Silva, que é portadora da doença, relatou a militância nacional nas esferas legislativas para avançar com regramentos que garantam os direitos das pessoas que vivem com essa síndrome, como foi o caso da lei aprovada na ALRS, que é precisa ser aplicada na prática, pediu. Também ativista da causa, do Amapá, em formato virtual, Genilza Valente, que preside a Associação de Pacientes de Fibromialgia naquele estado e dirige o Comitê Científico da Associação Nacional de Fibromialgia e Doenças Correlatas, defendeu a criação de política de saúde funcional, pautada no modelo biopsicossocial e foco na pessoa, além das questões específicas da doença.
Da Sociedade Brasileira de Reumatologia, o reumatologista Antonio Techy, em formato virtual, informou que a entidade entende a fibromialgia como síndrome, o conjunto de sinais e sintomas que podem fazer parte de várias doenças, “não é uma doença como as demais, que estão definidas”. Disse que a SBR estuda a doença, que afeta grande número de pessoas no Brasil e no mundo, reduzindo a capacidade laboral e a convivência social e familiar, e que a entidade reconhece a fibromialgia como “um problema de difícil solução porque envolve as vezes diagnósticos errôneos, e outras patologias temporárias deixam de ser tratados e passam a ter (os pacientes) o rótulo de fibromiálgico, não melhorando nunca”.
A vice-presidente do Conselho Estadual de Saúde, Inara Amaral Ruas, também apontou a falta de políticas públicas e acolhimento e o despreparo das equipes para tratar os 270 mil gaúchos, e especialmente gaúchas, uma vez que atinge mais as mulheres, portadores de fibromialgia. Sem acesso aos exames pelo SUS, essas pessoas enfrentam as limitações crescentes da Atenção Básica de saúde, motivo pelo qual defendeu na Conferência Estadual de Saúde recursos que assegurem o atendimento básico de saúde.
A Defensora Pública e dirigente do Núcleo de Defesa da Saúde, Liliane Paz Deble, de forma virtual, registrou aumento das demandas na busca por medicamentos para fibromialgia no pós-pandemia, e com queixas de doenças combinadas, como depressão e ansiedade, “verificamos que são pessoas fragilizadas pela falta de atendimento adequado”. Ela sugeriu atendimento humanizado, qualificação das equipes e aprovação de terapias eficazes e fornecidas pelo SUS, para não ter que judicializar, como acontece agora.
Seguiram-se manifestações dos vereadores Fernando Enfermeiro, de Capão do Leão; Serginho Oliveira, de Capão da Canoa, Fábio Perez, de Alegrete; e de Valdir Oliveira, de Santa Maria, onde lei recente sancionada dá prioridade no atendimento aos pacientes com fibromialgia no município. Na avaliação do santa-mariense, as diversas falas feitas durante a audiência demonstraram a necessidade da sociedade em geral se debruçar na luta por políticas públicas e ações legislativas com o objetivo de minimizar o sofrimento dos fibromiálgicos e oferecer a essa população mais qualidade de vida, além da capacitação dos profissionais de atendem esses pacientes. “Acompanhando o grupo vindo de Santa Maria percebi a dificuldade que é fazer uma simples viagem, mesmo que pequena, para embarcar e desembarcar do ônibus, ficar muito tempo numa mesma posição. E tudo isso faz parte do cotidiano dessas pessoas”, observou. Para o vereador, o Hospital Regional de Santa Maria, cuja capacidade ociosa beira 50%, poderia integrar esse leque de ações. “Lá são atendidas várias especialidades. O ideal é lutarmos para que o Regional também acolha um centro de referência para o tratamento da fibromialgia, a partir da contratualização das gestões municipal e estadual”, defendeu.
Bruna Engel, do Sindicato dos Enfermeiros, relatou preconceito no acolhimento desses pacientes na Estratégia de Saúde da Família, “falta empatia dos profissionais, dos familiares, das pessoas próximas, a dor não se enxerga”, e apontou a fragilidade da Atenção Básica com a terceirização e privatização dos postos de saúde. Também falou Carina Corrêa, da FibromialgiaSM, sobre a evolução da doença e as fragilidades que vai provocando no organismo, “nem mesmo o cabelo conseguimos pentear, porque provoca dor”.
A psicóloga Júlia Broise, do Grupal, grupo de pacientes Artríticos de Porto Alegre, relatou o trabalho que há 39 anos realiza com pessoas que vivem com doenças reumáticas e que causam dor, através de atividades múltiplas.
Tábata Rodrigues, da Secretaria Municipal de Saúde de Cachoeirinha, contou o início agora em maio de projeto-piloto do Ambulatório da Dor, espaço com profissional especializado para atender pacientes com dor crônica.
Centros de referência e atendimento preferencial –
O estado dispõe da lei 15.606, aprovada pela Assembleia Legislativa em 2021 e sancionada em abril do mesmo ano, que instituiu a Política Estadual de Proteção dos Direitos da Pessoa com Fibromialgia – Lei Daniel Lenz. Diz o regramento que “é considerada pessoa com fibromialgia aquela avaliada por médico que preencha os requisitos estipulados pela Sociedade Brasileira de Reumatologia ou órgão que venha a substituí-la”, e as diretrizes indicam o atendimento multidisciplinar; o incentivo à formação e à capacitação de profissionais especializados no atendimento à pessoa com fibromialgia e a educação de seus familiares; o estímulo à inserção da pessoa com fibromialgia no mercado de trabalho; e estímulo à pesquisa científica, contemplando estudos epidemiológicos para dimensionar a magnitude e as características da fibromialgia no Estado do Rio Grande do Sul, sempre associado a políticas públicas eventualmente em vigência em âmbito nacional. Também há a indicação de o Poder Executivo criar centros de referência para tratamento multidisciplinar dos fibromiálgicos. A lei especifica ainda que a pessoa com fibromialgia poderá usar filas preferenciais em órgãos públicos e privados e terá direito a estacionar em vagas preferenciais, sendo que a identificação dos fibromiálgicos em relação às filas deverá ser feita pelo Poder Executivo mediante comprovação médica e, em relação aos estacionamentos, pelos órgãos de trânsito competentes.
O dia 12 de maio é consagrado como Dia Mundial de Conscientização e Enfrentamento da Fibromialgia.