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O retorno de Lula à presidência da República fez com que os brasileiros voltassem a ter esperança e confiança no país. Paralelamente, a retomada de um governo sério também tem jogado luzes em situações que muita gente pensava que não existiam mais. Depois do impactante episódio envolvendo a população ianomâmi no norte do país, agora são desvendados os casos de trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Primeiro em Bento Gonçalves, na colheita da safra da uva, agora em Uruguaiana, na colheita da safra de arroz. Os resgates dos quase 300 trabalhadores em situação análoga à escravidão só foram possíveis pela volta da articulação entre Ministério do Trabalho e Ministério Público do Trabalho que atuaram junto nas duas operações.
Em audiência pública da Comissão de Cidadania e Direitos Humanos da Assembleia Legislativa, a procuradora do Ministério Público do Trabalho Ana Lúcia Stumpf afirmou que com a Reforma Trabalhista os casos de descumprimento de garantias básicas aos trabalhadores foram naturalizados. As bancadas do PT e do PCdoB também consideram que a total flexibilização das terceirizações e a precarização das relações de trabalho abriram espaço para todo tipo de exploração sem responsabilização das empresas empregadoras. Diante disso, as deputadas e deputados da Federação Brasil da Esperança elaboraram uma carta ao Ministro do Trabalho Luiz Marinho defendendo urgente promoção de reformas nas leis que disciplinam as relações de trabalho e emprego no país.
“Pode-se concluir que a precarização do trabalho, das suas relações, e a implementação da terceirização são extremamente prejudiciais para a classe trabalhadora, beneficiando apenas os donos dos meios de produção, com máxima exploração dos indivíduos que possuem apenas sua força de trabalho para vender”, diz um trecho do documento.
O líder da bancada do PT e também líder da Federação Brasil da Esperança na Assembleia Luiz Fernando Mainardi reforça que é preciso recuperar garantias e dignidade aos trabalhadores. “Os casos de regime análogos à escravidão no estado são resultado de seis anos de negligência com os direitos trabalhistas e direitos humanos. É preciso investigação e punições a essas práticas. São condutas inaceitáveis”.
A carta das deputadas e deputados do PT e do PCdoB ainda recuperaram publicações que apontavam para o erro da Reforma Trabalhista aprovada em 2017, ano seguinte ao impeachment da presidente Dilma Rousseff. Especialistas já alertavam que a alteração da legislação teria como consequência o aumento da informalidade, a diminuição média da remuneração e a maior incidência de trabalho escravo.
Confira a íntegra da Carta das bancadas do PT e PCdoB ao ministro do Trabalho
EXCELENTÍSSIMO SENHOR
LUIS MARINHO
Ministro do Trabalho e Emprego
BRASÍLIA DF
Os deputados estaduais que compõem a FEDERAÇÃO BRASIL DA ESPERANÇA, composta pela Bancada do Partido dos Trabalhadores (PT) e pela Bancada do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, abaixo signatários, vêm perante V. Exª para solicitar a necessária e urgente promoção de reformas nas leis que disciplinam as relações de trabalho e emprego, visando impedir a crescente precarização do trabalho, com retorno a patamares de dignidade e respeito para com a classe trabalhadora.
Há poucos dias ocorreu no Rio Grande do Sul o resgate de 207 pessoas, contratadas por empresa intermediadora de mão-de-obra, para trabalhar na colheita da safra de uva gaúcha, por se encontrarem submissos a condições degradantes, análogas à escravidão. A operação foi realizada em 22 de fevereiro, em ação integrada do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), Ministério Público do Trabalho (MPT) e as polícias Federal (PF) e Rodoviária Federal (PRF), com ampla repercussão em todo o Brasil e no exterior. Os trabalhadores foram recrutados na Bahia pela empresa Fênix Serviços Administrativos e Apoio à Gestão de Saúde LTDA, que prestava serviços para vinícolas na região. (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/02/colheita-de-uva-no-rs-era-feita-em-regime-de-trabalho-analogo-a-escravidao.shtml)
Segundo o noticiado, os empregados eram submetidos a violências, sofrendo torturas físicas e psicológicas — surras, choques elétricos, ataques com spray de pimenta, ameaças de morte —, além de más condições de trabalho e de alojamento, com a prática de compensação de vales, multas e descontos nos salários. Tudo isso, acrescido de desumanas jornadas de trabalho, de domingos a sextas, das 5h às 20h e sem pausas – apesar de serem forçados a assinar no ponto que folgavam também aos domingos. Eles eram atraídos por promessas de receber salários da ordem aproximada de R$ 4.000,00, os quais nunca foram pagos, dadas as compensações referidas.
O assunto ainda está sendo investigado. Porém, o responsável pela intermediadora de mão-de-obra responsável pelo alojamento de que foram resgatados os trabalhadores, embora tenha sido preso, pagou fiança no valor de R$ 39.000,00 e responderá pelo crime em liberdade. Nos dias subsequentes à operação, as investigações revelam outras situações semelhantes, em outros locais, demonstrando a reiteração dessas práticas abomináveis aos trabalhadores.
O número de pessoas resgatadas de trabalho análogo à escravidão no Rio Grande do Sul triplicou desde 2021. Naquele ano, os auditores ficais do trabalho resgataram 69 vítimas no Estado. Em 2022, foram 156 e, em 2023, já são 208.
Esses fatos impõem a necessidade urgente de uma reformulação na legislação regulatória do trabalho e emprego no Brasil. O assunto não é novidade, merecendo destacar trecho de artigo publicado pela Fundação Perseu Abramo, em 2021, que bem descreve a grave situação que ora se aponta:
Em 2017, o governo Michel Temer realizou uma mudança radical na legislação trabalhista, aprovando no Congresso Nacional a Lei 13.467, que altera totalmente o sistema de trabalho até então existente. A essência da mudança nas regras é trocar as fontes de direitos trabalhistas. A fonte prevalente deixa de ser a regulação pública universal, civilizatória, portanto, e passa a ser o “livre encontro” entre vendedores e compradores da força de trabalho. Foi o mais grave retrocesso nos direitos dos trabalhadores nos últimos cem anos da história do país.
Essa é a ideia síntese da reforma, de caráter liberalizante e regressiva. Ela prevê que as regras que regulam a relação capital e trabalho possam ser ajustadas via acordo individual, que poderá, inclusive, ser redutor de direitos. Há, portanto, uma clara contraposição ao sistema até então vigente, no qual os acordos, mesmo os coletivos, não podem reduzir direitos definidos em lei, em face dos princípios da norma mais benéfica e da irrenunciabilidade de direitos assegurados por normas de ordem pública.
O nome “reforma” foi, mais uma vez, mal-empregado. Porque ela não modernizou, como prometido. Apenas precarizou as relações trabalhistas em diversos aspectos:
- Criou a possibilidade de prevalência de acordos e convenções coletivas sobre a legislação. As regras da Constituição tornaram-se teto dos direitos do trabalho e as leis ordinárias passaram a poder ser descartadas por instrumentos de negociação direta entre trabalhadores e empresas;
- Instituiu ou regularizou diversas modalidades de contratos precários – legalizou o contrato de trabalho intermitente, ampliou os limites de contrato em tempo parcial, liberou o uso de contrato de trabalho “autônomo exclusivo”, sem reconhecimento de vínculo;
- Incentivou a chamada “pejotização” do trabalho, com o trabalhador contratado como empresa, com menos direitos;
- Permitiu a terceirização de qualquer atividade das empresas, de forma ilimitada no setor privado e no serviço público (Lei 13.429/2017);
- Facilitou o desligamento por meio de diversos mecanismos – retira a obrigatoriedade de que as rescisões contratuais de empregados com mais de um ano na empresa tenham, como condição de validade, a assistência sindical; estabelece a rescisão de “comum acordo”, com corte de 50% no aviso prévio, sem direito a seguro desemprego; facilita a dispensa imotivada; etc;
- Promoveu alterações nas regras sobre jornada de trabalho – regulamenta a jornada 12/36 horas; elimina a remuneração dos períodos de deslocamento dentro da empresa ou para empresas de difícil acesso; permite a extrapolação do limite de 10 horas diárias; prevê possibilidade de acordos individuais para bancos de horas e para tele trabalho, etc.
Essa foi uma reforma contra as trabalhadoras e os trabalhadores, e que também resultou na fragilização da organização sindical no país. Afinal, dentre as medidas aprovadas, estão o fim da contribuição sindical obrigatória e a imposição de obstáculos e dificuldades para a cobrança de outras formas de financiamento; a eleição de representação de trabalhadores sem o acompanhamento dos sindicatos; e a negociação de acordos e o encerramento de contratos sem qualquer participação sindical. Ademais, a ampliação da terceirização para todas as atividades também tende a fragmentar as organizações sindicais.
Inegável que Temer pagou a conta do apoio ao golpe com menos custos e obrigações para as empresas e menos direitos para os trabalhadores e trabalhadoras. Mas este foi apenas o preâmbulo para outra reforma, desencadeada por Bolsonaro, que também cravou sua faca nas costas da classe trabalhadora.
O mandato de Bolsonaro começou com a extinção do Ministério do Trabalho, transformado em mera secretaria do Ministério da Economia. Medida coerente com a linha a ser adotada em seu governo, de continuamente buscar reduzir o custo da mão-de-obra e aumentar o poder das empresas sobre a gestão do trabalho.
Exemplar desta abordagem, a chamada Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019) foi tão modificada em sua tramitação que, ao final virou uma minirreforma trabalhista, com regras extremamente prejudiciais para os trabalhadores.
A nova lei ampliou para todos os setores de atividade a regra que autoriza o trabalho aos domingos, com a folga em dias úteis. Também autorizou a empresa a escalar o trabalhador nos finais de semana durante todo mês, com apenas uma folga de 24 horas em um domingo a cada quatro semanas. O pagamento em dobro do domingo trabalhado foi, na prática, extinto. Isto porque o trabalhador ganhará em dobro as horas trabalhadas no domingo apenas se o empregador não der a folga durante a semana.
A lei criou o chamado “ponto por exceção”, modalidade em que o trabalhador não precisará registrar o ponto todos os dias. O registro só ocorrerá quando trabalhar além da sua jornada normal, ou em dias fora de sua escala, para fins de recebimento de suas horas extras. Como esta anotação de exceção deverá ser autorizada pelo empregador, o trabalhador estará sobre pressão direta para não o fazer. Esse sistema também priva a fiscalização do trabalho de instrumento importante para verificar os excessos de jornada. Abre, também, a possibilidade de pagamento “por fora” de parte da remuneração, em prejuízo tanto ao empregado, quanto aos fundos públicos, como o FGTS, à Previdência Social e à Receita Federal. (GOLPE 2016 – A precarização do trabalho como política do Estado, https://fpabramo.org.br/focusbrasil/2021/06/28/a-precarizacao-do-trabalho-como-politica-do-estado/)
Nessa esteira, ampliando a precarização do trabalho, a Lei nº 13.429/2017 autorizou a denominada terceirização irrestrita da mão-de-obra. Essa, juntamente com a malsinada reforma trabalhista, lamentavelmente declaradas constitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, jogaram por terra conceitos arraigados no Tribunal Superior do Trabalho, relativos a necessidade de “externalização” das atividades-meio para garantir especialização e maior concentração empresa em sua atividade central; revogou-se, na prática, os conceitos de atividade principal (final) e acessória (meio).
No contexto, a precarização do trabalho ocorre pela redução das remunerações, benefícios e garantias dos trabalhadores em razão de sua não vinculação direta junto à empresa que utiliza sua mão-de-obra. “A lógica do Mercado encontra na terceirização e em tantas outras formas de trabalho precário um modelo regulatório que submete a classe trabalhadora a níveis desumanos para manter a hegemonia do capital financeiro”. (https://www.cartacapital.com.br/opiniao/precarizacao-como-regra-a-verdadeira-face-do-trabalho-terceirizado/)
Isso permite a ocorrência dos fatos inicialmente narrados; isso permite que se pratique, com muita liberdade e quase sem possibilidade de fiscalização eficiente, a submissão de trabalhadores a condições degradantes e análogas ao trabalho escravo — isso está diretamente ligado à política de sucateamento das instituições públicas, com a diminuição das funções estatais, com o denominado Estado Mínimo, pois a redução da capacidade de intervenção estatal impede a eficiente ação fiscalizatória.
Tais consequências nefastas, aliás, vêm sendo apontadas há muito tempo, como se percebe do artigo publicado em 2017, abaixo reproduzido parcialmente:
(…)
A informalidade deve aumentar
A terceirização contribui para a persistência da informalidade com o trabalho por conta própria sem proteção social e a contratação de trabalhadores sem registro como forma de obter competitividade para sobreviver no mercado
A massa salarial do mundo do trabalho formalizado deve cair
A remuneração salarial para os trabalhadores terceirizados é menos 27,1% em comparação com os trabalhadores efetivos
A jornada de trabalho deve crescer
Os terceirizados realizam uma jornada de 3 horas a mais semanalmente, isso sem considerar as horas extras ou banco de horas realizadas.
Deve-se reduzir o tempo de emprego e aumentar a rotatividade laboral no mercado de trabalho formal
Enquanto a permanência no trabalho é de 5,8 anos para os trabalhadores diretos, em média, para os terceiros é de 2,6 anos. Desse fato decorre a alta rotatividade dos terceirizados – 44,9% contra 22% dos diretamente contratados.
A terceirização se configura como dano existencial
Na medida em que as relações de trabalho na qual estão inseridos os trabalhadores terceirizados
(…)
Deve-se aumentar o trabalho análogo à escravidão
Por exemplo, 90% dos 40 maiores resgates em todo o Brasil nos últimos 4 anos tinham terceirizados.
A terceirização vai aumentar a espoliação de direitos e benefícios trabalhistas e a corrupção da coisa pública no país
Quando a grande empresa externaliza suas atividades para empresas e pessoas, aumenta os custos para a sociedade (espoliação de direitos e benefícios trabalhistas, empobrecendo trabalhadores e reforçando a concentração de renda no país; e com o desvio de dinheiro do fundo público, fraudes em licitações, evasão fiscal, focos de corrupção, aumento das demandas trabalhistas e previdenciárias e perda da qualidade de serviços e produtos).
A terceirização vai aumentar a clivagem no mundo do trabalho formal
É possível que cresça a figura do ‘cidadão de segunda classe’, à mercê dos golpes das empresas que fecham do dia para a noite e não pagam as verbas rescisórias aos seus trabalhadores e às altas e extenuantes jornadas de trabalho. (https://fpabramo.org.br/2017/06/30/terceirizacao-deve-ultrapassar-13-do-mercado-formal-em-2017-caso-adi-nao-seja-aceita/).
Pode-se concluir que a precarização do trabalho, das suas relações, a implementação da terceirização são extremamente prejudiciais para a classe trabalhadora, beneficiando apenas os donos dos meios de produção, com máxima exploração dos indivíduos que possuem apenas sua força de trabalho para vender.
Pelo suscintamente exposto, vêm os signatários reiterar a solicitação de adoção de providências, para a urgente reforma legislativa atinente às relações de trabalho e emprego, confiando no acolhimento da sua pretensão.
Porto Alegre, 8 de março de 2023.
LUIZ FERNANDO MAINARDI
Deputado Estadual – PT
Líder da Bancada do PT e da Federação Brasil da Esperança
JEFERSON FERNANDES
Deputado Estadual – PT
Líder Partidário e líder do Governo Lula
BRUNA RODRIGUES
Deputada Estadual – PCdoB
Líder Partidária PCdoB
ADÃO PRETTO
Deputado Estadual – PT
LAURA SITO
Deputada Estadual – PT
LEONEL RADDE
Deputado Estadual – PT
MIGUEL ROSSETTO
Deputado Estadual – PT
PEPE VARGAS
Deputado Estadual – PT
SOFIA CAVEDON
Deputada Estadual PT
STELA FARIAS
Deputada Estadual – PT
VALDECI OLIVEIRA
Deputado Estadual – PT
ZÉ NUNES
Deputado Estadual – PT