Os negócios envolvendo os processos de privatizações de patrimônio público, via de regra, são escandalosos. Desde a década de 90, quando o RS foi o laboratório das privatizações no país, sob o governo de Antônio Britto (MDB), as propaladas soluções privatistas nunca entregaram o que prometeram. Na época, Britto privatizou duas concessionárias da CEEE por R$ 3,14 bilhões – praticamente o mesmo valor pretendido através da anunciada intenção de venda da Corsan pelo governador Eduardo Leite.
Mais da metade dos recursos obtidos com a venda das duas concessionárias seriam aplicados, de acordo com Britto, em infraestrutura, educação e saúde. O povo gaúcho nunca viu a cor desse dinheiro, que desapareceu no caixa único do estado. Para os cofres públicos, restaram as dívidas e, para o consumidor, tarifas extorsivas e serviços deficitários.
A lógica que permeia os grandes grupos privados é a de lucro máximo. E essa maximização dos dividendos, em se tratando de serviços estratégicos à população, como é o caso do saneamento, só pode se realizar através de uma fórmula extremamente danosa ao consumidor. Essa fórmula associa investimentos mínimos com arrecadação máxima.
Aqui no Brasil, o caso de Manaus é ilustrativo do quanto é equivocado e perigoso entregar para o controle privado serviços estratégicos à população. De acordo com o Doutor em Ciências Sociais Sandoval Alves Rocha, o saneamento privatizado de Manaus lidera o ranking das reclamações. Ainda segundo ele, as empresas privadas de saneamento lucraram nos últimos 5 anos mais de R$ 1 bilhão e 600 mil reais, enquanto investiram pouco mais de R$ 311 milhões no mesmo período.
No RS, a experiência de Uruguaiana é uma novela envolvendo corrupção (através da Odebrecht, que foi a primeira concessionária a assumir os serviços de saneamento privatizados no município), descumprimento contratual nas metas de expansão da rede, dívidas não pagas ao poder público municipal (R$ 30 milhões) e cobranças abusivas através do aumento do preço das tarifas.
Diante desse quadro, é inacreditável que o governador do estado, descumprindo uma promessa de campanha, anuncie a sua mudança de posição em relação à Corsan, manifestando a pretensão de vendê-la. A justificativa central seriam as metas do chamado Novo Marco Legal do Saneamento, que imporiam ao RS a necessidade de triplicar as metas anuais de investimentos até 2033.
Ora, se o poder público terá dificuldade de cumprir as tais metas, quem assegura, com o trágico histórico das privatizações do setor ocorridas no mundo e no Brasil, que os investidores privados o fariam? Ou tentarão fazê-lo como sempre, com dinheiro público através de instituições como o BNDES, que no governo Temer financiou privatizações no setor? Isso é uma piada de mau gosto. Você vende a sua casa e empresta dinheiro a juros e prazos de compadrio para o comprador fazer reformas e ampliações.
A verdade, que está disponível no site da Corsan, através de balancetes da sua Superintendência de Contabilidade, é que a Companhia é há anos uma empresa superavitária, ou seja, tem muito mais arrecadação do que despesa. Portanto, ela apresenta condições de caixa satisfatórias para assumir metas de expansão dos serviços. Além disso, a União, através de suas instituições financeiras, pode e deve voltar a financiar a expansão de redes de saneamento para empresas públicas, como fez no passado recente através do PAC. Esse delírio da selvageria neoliberal, expresso neste caso na legislação do Novo Marco Regulatório, uma concepção atrasada e submissa de gestão pública, não tem fôlego para resistir às demandas legítimas da sociedade por direitos universais.
Sobre os números da Corsan, em 2020 a Companhia teve uma receita de mais de R$ 4 bilhões e 800 mil reais, diante de uma despesa de pouco mais de R$ 2 bilhões e 900 mil reais. Portanto, um lucro de quase R$ 2 bilhões de reais. E o governador Eduardo Leite quer torrar na grelha do capital pelo valor de mercado de R$ 3 bilhões. Você consegue se dar conta do péssimo negócio que isso representaria para os cofres públicos? A quem realmente interessa essa venda, quando o valor pretendido de ser arrecadado em leilão é menor que a receita total de um único ano (2020) da Corsan?
Por um outro viés, mas ainda embasado nos números da contabilidade da Companhia, o superávit de 2020 corresponde a mais de 63% do que Eduardo Leite pretende arrecadar, vendendo o que não lhe pertence. Isso é uma irresponsabilidade com o futuro da população gaúcha. Precisamos somar forças na sociedade para barrar essa insensatez antes que seja tarde e paguemos um preço altíssimo que nos será cobrado pelas novas gerações.
Jeferson Fernandes, Deputado Estadual (PT), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Água Pública