A produção de cachaça no Rio Grande do Sul tem base na agricultura familiar. Da cana-de-açúcar cultivada em pequenas propriedades é possível fazer o melado, o açúcar mascavo, a rapadura, serve para alimentação de animais, e o caldo ou garapa serve para beber ou processo de fermentação e destilação produzir a cachaça. No centro do país, onde estão as grandes áreas de cultivo, o destino é para produção industrial de álcool e açúcar.
A cachaça é considerada uma bebida original do Brasil. Está na cultura. Inclusive, baseado nisso, o Decreto Federal n° 4.062/2001, define as expressões “cachaça” e “cachaça do Brasil” como indicações geográficas, e a Instrução Normativa INPI/PR n° 68/2017 estabelece as condições para o Registro da Indicação Geográfica Cachaça. Assim como a tequila é bebida associada ao México, a cachaça é genuinamente brasileira. A cachaça é portanto, parte da nossa cultura, das nossas tradições, gera trabalho e renda em muitos munícipios pelo país afora.
Neste contexto, foi que a Assembleia Legislativa aprovou no dia 14 de outubro o PL 159/2020 que dispõe sobre a Cachaça Artesanal Gaúcha, uma proposição do Poder Executivo. Entretanto, coloca-se como importante analisar essa iniciativa para refletirmos sobre os equívocos que se comete na construção de políticas públicas, mesmo que tenham boa intenção, caso do referido projeto. E, embora durante a sessão passou por alterações via emendas, propostas pelo próprio governo, que teve como finalidade corrigir problemas identificados, no final das contas, ficaram questionamentos e a dúvida se o projeto que agora se tornará lei, alcançará o objetivo.
Na tramitação, o governo do Estado queria pressa, assim o projeto não foi discutido em comissão de mérito e teve a inclusão na Ordem do Dia para ir a votação no plenário. Para tentar compensar a falta de debate, por iniciativa de alguns parlamentares, liderados pelo deputado Zé Nunes (PT), realizou-se uma audiência pública na Comissão de Agricultura que buscou a participação de órgãos públicos ligados ao fomento, regulação e fiscalização, bem como participação de entidades sindicais, das entidades representativas do setor da cachaça e dos produtores. Aí reside uma observação: fazer política pública com pressa e sem debate público não é o melhor caminho. A participação pode dar mais trabalho, mas produz melhores resultados e pode garantir mais legitimidade.
O setor da cachaça representado pelo Instituto Brasileiro da Cachaça – IBRAC e pela Associação dos Produtores de Cana-de-açúcar e seus Derivados do Estado Rio Grande do Sul – Aprodecana, manifestaram posição contra o PL 159/2020. O centro da crítica estava no entendimento de que o projeto estadual entra em matéria de competência federal. Desta forma, portanto, seria ilegal e criaria poderia levar a questionamentos e uma confusão.
A redação da ementa inicial do PL 159/2020, assim colocava: “Dispõe sobre a Cachaça Artesanal Gaúcha, estabelece requisitos e limites para a sua produção e comercialização, define diretrizes para o registro e a fiscalização do produtor e cria o Selo da Cachaça Artesanal Gaúcha e o Selo de Revenda da Cachaça Artesanal Gaúcha”. Que depois, em plenário, novamente às pressas, ganhou a seguinte redação: “Dispõe sobre a Cachaça Artesanal Gaúcha, estabelece requisitos e limites para a sua produção e comercialização, define diretrizes para o registro e a fiscalização o do produtor e cria o Programa Estadual de Incentivo a Cachaça da Agricultura Familiar do Estado do Rio Grande do Sul, o Selo da Cachaça da Agricultura Familiar e o Selo de Revenda da Cachaça Artesanal”.
A iniciativa foi apresentada ao parlamento com a intenção de criar as condições para a regularização de micro e pequenos produtores de cachaça no estado, aspecto positivo e mostra relevância social, com legitima preocupação com a agricultura familiar, de dotar o Estado do RS de uma lei para incluir os pequenos e valorizar a cachaça produzida em pequena escala nas propriedades familiares.
Entretanto, o projeto gerou questionamentos e dúvidas sobre a eficácia por ser a matéria de competência federal, com regras e fiscalização do Ministério da Agricultura. O Decreto n° 6.871/2009, que regulamenta a Lei Federal n° 8.918/1994 dispõe sobre a padronização, classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas. O órgão federal tem normativas que regram o processo de produção e registro da bebida.
No âmbito estadual estaria a responsabilidade do fomento, com linhas de financiamento adequadas, apoio técnico, promoção dos produtos e acesso a mercados, ações para melhorar a qualidade etc. E, o melhor caminho seria um debate maior na Câmara Setorial no âmbito da Secretaria da Agricultura.
Avaliação de alguns, era de que seria adequado a criação de um programa para a cachaça artesanal, o que o governo acabou fazendo em plenário para tentar evitar conflitos com a esfera federal. Criou-se, portanto, Programa Estadual de Incentivo a Cachaça da Agricultura Familiar do Estado do Rio Grande do Sul. Mas, manteve-se a redação que remete a uma ilusão de que o Estado pode fazer registro e fiscalização. O Selo da Cachaça Artesanal Gaúcha virou o Selo da Cachaça da Agricultura Familiar. O Selo de Revenda da Cachaça Artesanal Gaúcha manteve-se. Criou-se uma confusão.
No estado, existe a Lei n° 13.921/2012, instituiu a Política Estadual da Agroindústria Familiar do Rio Grande do Sul, criado no Governo Tarso Genro, que é um instrumento para apoiar setores, inclusive a cachaça, da agricultura familiar. O Programa Agroindústria Familiar – Sabor Gaúcho teve execução de R$ 7,3 milhões por ano no Governo Tarso Genro, mas, não teve execução orçamentária no Governo de Eduardo Leite, o que é lamentável, deixando evidente a falta de compromisso com a agricultura familiar e que as micro e pequenas agroindústrias não estão entre as prioridades da gestão atual. Para o ano de 2021, a Lei Orçamentária prevê um valor simbólico de R$ 1 mil para o programa.
Um dos pontos questionados é que a legislação federal não tem definição para cachaça artesanal. Essa é uma definição usual para a pequena escala, para caracterizar micro e pequenos produtores. Compreende-se o artesanal como algo que tem trabalho e marcas do local, da cultura e das tradições. Na publicação Cachaça Artesanal do Sebrae, de 2008, consta a seguinte definição: cachaça industrial aquela obtida em “destiladores de coluna”, também conhecidos como “destinadores contínuos”, e a cachaça artesanal aquela produzida em alambiques.
O Instituto Brasileiro da Cachaça – IBRAC, citando o censo do IBGE de 2016, coloca que são 11.024 estabelecimentos produtores no país e que existem estimativas que chegam a 15 mil. Que 90% da produção em volume está legalizada, porém, a estimativa é que em número de produtores, cerca de 85%, estejam na informalidade, com predomínio dos micro e pequenos produtores familiares.
Entretanto, o Centro Brasileiro de Referência da Cachaça – CBRC estima em 30 mil os produtores que existem no país, cerca de 98% seriam micros e pequenos, na sua maioria absoluta na informalidade.
Segundo o Centro Brasileiro de Referência da Cachaça – CBRC a estimativa é que a cadeia produtiva da cachaça movimente R$ 7,5 bilhões por ano e é responsável por cerca de 600 mil postos de trabalho diretos e indiretos.
Segundo o Anuário da Cachaça 2020, publicação do Mapa, em 2019 o país tinha 1.086 estabelecimentos de aguardente e de cachaça, registrados no Ministério da Agricultura. Sendo 357 de aguardente e 894 de cachaça, e 165 com produção de aguardente e de cachaça. Em relação a marcas são 701 de aguardente e 4.003 de cachaça.
A região Sudeste do Brasil concentra os produtores registrados com 622 estabelecimentos, ou seja, 70% do total.
O Estado de Minas Gerais com 375 estabelecimentos é o maior produtor. Depois vem São Paulo, com 126, Espírito Santo, com 62, Rio de Janeiro, com 59, Rio Grande do Sul, com 43 estabelecimentos.
Coloca-se para reflexão a importância de discutir mudanças na legislação federal, incluindo o conceito de artesanal e outras mudanças para favorecer a legalização dos micro e pequenas cachaçarias. Pode-se ter como referência a aprovação da Lei do Vinho Colonial, Lei n° 12.959/2014, sancionada pela presidente Dilma Rousseff, que facilitou a comercialização de vinho da agricultura familiar. Cabe lembrar que essa Lei tem origem no PL 2693/2011, apresentado pelo então deputado federal Pepe Vargas.
O Estado de Minas Gerais tem a Lei n° 13.949/2001 que estabelece o padrão de identidade e as características do processo de elaboração da cachaça de Minas. O mesmo Estado tem a Lei ° 22.926/2018 que criou o Programa Certifica Minas, que entre outros tem o Certifica Minas Cachaça para certificar a qualidade do produto no estado.
Há de se reconhecer que nas últimas duas décadas houve uma evolução da qualidade do produto cachaça, que ampliou o reconhecimento internacional e exportações. Isso tem relação com iniciativas, legislação e programas de âmbito federal, que inclui a instalação da Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cachaça em 2004. E, da organização do setor, o Instituto Brasileiro da Cachaça – IBRAC, fundado em 2006.
Nesse debate é importante colocar que este setor deve fazer parte da estratégia de desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma bebida muito consumida no país e que no mundo representa a cultura brasileira. Na Expointer, o Pavilhão da Agricultura Familiar tem mostrado um pouco do potencial da cachaça gaúcha como bebida de qualidade e com capacidade de gerar trabalho e renda, especialmente, nas propriedades familiares e pequenos municípios.
O problema da iniciativa em análise é que gera uma expectativa da parte dos produtores que possivelmente não possa cumprir, por serem as regras de produção, o registro e a fiscalização de responsabilidade do Ministério da Agricultura, portanto de âmbito federal.
O PL 159/2020 trouxe a expectativa de contribuir para que os produtores de cachaça que estão na ilegalidade pudessem ter um caminho para a formalidade, portanto, veio com boa intenção. No entanto, só isto não é suficiente para fazer política pública. É preciso compromisso real com os setores. E tudo indica que isso não existe por parte do governo Eduardo Leite.
Agora os produtores e suas organizações, a sociedade e o parlamento, devem cobrar do governo estadual a regulamentação da lei para avançar na regularização dos tantos que estão na informalidade. O problema é que há boa chance de daqui um tempo ao avaliar-se a aplicação da lei, chegar-se à conclusão que não passou de uma ilusão porque até agora a parte que compete ao governo estadual, que é colocar a agroindústria familiar e a própria agricultura familiar no orçamento público e entre as prioridades, não está sendo feita. Corre-se o risco de simular resolver um problema. E não é assim que se faz política pública responsável para a agricultura familiar.
Demilson Fortes, agrônomo, assessor da Bancada do PT em Desenvolvimento Rural e Meio Ambiente.