Lembrei-me de Ettore Scola (1931 – 2016) em Porto Alegre. Sua memória foi introduzida pelo título de um dos seus grandes filmes, “Feios, Sujos e Malvados”, suscitado pela presença chocante -em todas as emissoras de TV- da reunião ministerial do dia 22 de abril. Nela, o Governo Bolsonaro mostrou todas as suas entranhas políticas, patológicas e existenciais, que dificilmente seriam encontradas nos governos mais trágicos, deprimentes e despreparados do mundo. Talvez nos Governos de Idi Amin, Stroessner, Bokassa, Pinochet, pudessem ser verificados disparates e horrores semelhantes, mas certamente seriam expressos com outra linguagem e provavelmente com uma agenda mais organizada.
Da fixação anal ao armamento geral das milícias, do ódio aos indígenas à destruição da Amazônia, das ameaças aos “vagabundos” do Supremo à incompreensão radical sobre o significado da liberdade de imprensa, do uso de palavras de baixo calão à burrice sistêmica ali instalada, tal reunião provou que a República não tem nenhum valor para os meliantes ali reunidos. E que os protocolos mínimos de respeito à magistratura presidencial estão soterrados pelas sucessivas infâmias cometidas. E o pior: o ocorrido não foi uma surpresa nem um descuido cometido em festas de lupanares ou através de brincadeiras de botequins, mas foi expressa a essência de um Governo que, de resto, não possui nenhuma civilidade política e qualquer compromisso republicano.
Sempre foi visível que Bolsonaro era isso mesmo: prometeu assassinar adversários, defendeu a tortura e confessou que desejava fuzilar Fernando Henrique. Mesmo assim foi colocado num mesmo nível de Haddad, pela própria grande imprensa que hoje -ainda bem- despreza-o e abandona-o, mas o faz não porque ele seja eticamente e politicamente um ser desprezível, mas porque sua incompetência e sua forma fascista de fazer política -como Chefe de Estado- não visa somente restringir a democracia para as pessoas comuns do povo, mas também para as elites burguesas que se chocarem com a sua família e a sua visão demente de país. Independentemente disso todos devemos nos unir com todos que querem retirar, dentro da lei, o atrabiliário do Governo.
Sempre foi visível que Bolsonaro era isso mesmo: prometeu assassinar adversários, defendeu a tortura e confessou que desejava fuzilar Fernando Henrique. Mesmo assim foi colocado num mesmo nível de Haddad, pela própria grande imprensa que hoje -ainda bem- despreza-o e abandona-o, mas o faz não porque ele seja eticamente e politicamente um ser desprezível, mas porque sua incompetência e sua forma fascista de fazer política -como Chefe de Estado- não visa somente restringir a democracia para as pessoas comuns do povo, mas também para as elites burguesas que se chocarem com a sua família e a sua visão demente de país. Independentemente disso todos devemos nos unir com todos que querem retirar, dentro da lei, o atrabiliário do Governo.
Em julho de 96, Ettore veio conhecer o cinema e as ruas da cidade -também a Ipanema do nosso Guaíba- depois caminhar na Vila Pinto, conversando com os pagodeiros, os delegados do Orçamento Participativo, exaltando a cidade que se construía em paz. Ettore -amigo de Fellini- que se apaixonou pelo trabalho dos “giovane” da Casa de Cinema, foi um dos mais importantes diretores do cinema italiano. Já em 1974 com o seu “Nós que nos amávamos tanto”, marcou uma personalidade artística e política que depois apareceu por inteiro na sua colaboração brilhante no documentário “Um outro mundo é possível”, sobre a reunião do G8 -em Gênova- onde ocorria também uma sessão do “Foro Social Mundial.” Estive lá.
Narra o próprio Scola -que já lembro com emoção- numa carta sobre a sua visita a Porto Alegre: “Em 28 de julho de 96 fui hóspede da cidade de Porto Alegre (…) experiência enriquecida por uma longa visita em muitas regiões da periferia, durante a qual fui guiado pelo companheiro Tarso Genro, que era Prefeito em final de mandato” (conhecendo assim) “um modo particular de estabelecer a relação entre as instituições e os cidadãos, um modo forte de afirmar a igualdade e o direito de cada um à distribuição mais justa daqueles recursos que possam garantir melhores condições de vida e de progresso” (…); e a confiança que (o Governo) despertava nascia da sua disponibilidade, da sua sinceridade, da sua paixão: comunicava isso aos outros e comunicou também a mim.”
Em 1976, Ettore Scola fizera o roteiro e dirigira “Feios, Sujos e Malvados”, talvez o epílogo genial do neo-realismo italiano, no qual descreveu a vida no barraco de uma favela romana, onde morava um rico arruinado, Mazzatela – interpretado por Nuno Manfredi- com sua mulher e dez filhos, em situação de carência extrema. Ali a vida diária era lutar para não perder a dignidade ilusória e, se possível, manter uma relação familiar tensa, sob permanente pressão -interna e externa- na qual explodiam os tormentos da carência material, do egoismo e da necessidade. Grandezas e misérias, resistência moral e crimes, se revelam em cada um dos personagens deste retrato da vida miserável dos abandonados.
O que Ettore Scola indaga nesta película é se os pobres e deserdados, lidando com os valores que giram em torno do dinheiro -numa sociedade de consumo restrito- podem, de alguma, forma elevar-se a uma outra condição humana e vencer sozinhos a deserção e a alienação social, na qual foram jogados pelo seu destino forjado na sociedade de classes. É um filme realista e crítico, ao mesmo tempo trágico e irônico, onde o gênio de Scola, sem paternalismos, mas com uma enorme compaixão resgata a humanidade dos “feios, sujos e malvados”, que poderíamos ser, qualquer um de nós, se assediados pelas mesmas fatalidades sociais selvagens no domínio do capital sem freios.
A compaixão de Scola com os “feios, sujos e e malvados” contrasta com o ódio fluente na reunião ministerial de Bolsonaro que, na verdade, mostra duas vertentes estratégicas pelas quais ele opera o seu domínio sobre o Estado. A primeira é a força imposta ao país, através de uma ordem jurídica “de fato” -normas não escritas paralelas à Constituição- expressas nas falas do Presidente, através das quais ele anula e quer tornar subservientes todas as instituições republicanas que não se enquadrem no que sua mente perversa deseja para o país. Seja para questões relacionadas com os problemas ambientais de saúde pública, de direitos sociais e de convívio entre opostos na democracia, autorizando os mais exaltados a pedirem a prisão dos “vagabundos do STF”, anunciando para “depois” a prisão de Governadores e Prefeitos.
A segunda é a estratégia de Bolsonaro -aliás adotada pela extrema-direita mundial- que pretende fazer do caos a forma especial de enfrentamento com a desordem -que ele mesmo cria- cooptando a sociedade formal para um autoritarismo que presumidamente lhe devolva a “segurança” e o bom funcionamento das bolsas. Esta estratégia faz da ingovernabilidade uma virtude e assim um ponto-de passagem para um Governo proto-fascista de caráter miliciano. A decisão do Ministro Celso de Mello, que mostra as entranhas deste Governo paranoico e alucinado, foi um dos mais admiráveis serviços que uma Instituição da República ofereceu à normalização política do país e ela deve ser festejada -e será- como um momento decisivo para travar os “perversos, fascistas e desalmados” na sua vontade de matar a República e assassinar a esperança.
Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.