Pode o Governo Municipal promover o desenvolvimento econômico do Município? E pode fazê-lo com uma agenda Democrático-Popular?

Carlos Águedo Paiva*

Há três formas básicas de um município se desenvolver economicamente. As duas primeiras formas envolvem alguma articulação com estruturas econômicas exteriores de porte muito maior. Mas há uma terceira via em que o próprio município é o motor de seu crescimento. Vejamos quais são estas alternativas.

1) ele é “puxado” pelo crescimento nacional ou estadual: ao atender um nicho específico da crescente demanda interna todo o sistema econômico local é levado à expansão;  2) ele é “puxado” pelo crescimento externo: o processo é idêntico ao caso “1” com a diferença de que a economia local recebe um impulso desde fora e não do resto do país; como ocorreu com São Paulo no ciclo do café, com Manaus no ciclo da Borracha e com municípios do Centro-Oeste e demais áreas de Cerrado no recente ciclo sojícola e da proteína animal da primeira década do século XXI2;   3) por fim, mesmo sob condições de estagnação da economia nacional ou externa, o município pode se expandir economicamente se – e somente se – ele ocupar o nicho de mercado anteriormente ocupado por um outro município, produzindo algum produto de forma mais eficiente, com custos menores e/ou de forma mais eficiente e com maior qualidade.   Ora, é retomada do crescimento nacional no curto e no médio prazo 3. Há, isto sim, alguma possibilidade de crescimento regional atrelado ao exterior (hipótese 2, acima). Mas isto envolve atrelamento à China (único país do mundo que cresce de forma sustentada) e, portanto, à produção de commodities. O que, tampouco é um horizonte muito alvissareiro em termos industriais. E, de qualquer forma, o que temos no horizonte político imediato, são as eleições de 2020, eleições municipais. Logo, o ponto em destaque é: o que se pode fazer “com as próprias pernas”. O que nos leva de volta ao ponto 3. Antes, porém, há que se resgatar o que as três alternativas têm em comum. E isto é muito importante.

As três alternativas partem de um princípio comum: a localidade cresce quando ela “exporta mais” para o “seu” exterior – vale dizer, para outros municípios, para outras regiões do seu país ou, até, para fora do país. Na realidade, não se trata exatamente de “exportar”, mas de ampliar o ingresso líquido de recursos externos. Em muitos municípios este ingresso não está associado à remessa de produtos para fora, mas ao ingresso de pessoas que despendem sua renda no município. Todo o município turístico cresce quando o afluxo de turistas cresce. Mas o processo é o mesmo naqueles municípios que são polos de serviços complexos (educação universitária, serviços de saúde hospitalar e de diagnóstico de alta complexidade, serviços judiciários e advocatícios, consultoria empresarial e tecnológica, etc.). Se dois municípios com estas características disputam área de influência sobre potenciais “satélites”, políticas de atendimento às demandas ainda não contempladas (assistência técnica, por exemplo) de superação de gargalos específicos podem resultar na conquista de uma área de influência maior e, portanto na supressão da influência do concorrente: um dos dois municípios cresce em detrimento do outro4. Independentemente do País ou da Unidade Federada estar evidente que a terceira dentre as alternativas acima não é socialmente sustentável, pois o crescimento/desenvolvimento de uma localidade dá-se em detrimento de outra, sem ganhos efetivos para a nação como um todo. Contudo, ela não pode ser simplesmente descartada. Especialmente se reconhecermos que a crise econômica brasileira é estrutural e não há perspectivas realistas de uma forte estagnada. Este é um exemplo claro e simples de viabilidade de uma gestão municipal ser eficaz na promoção do crescimento local.

E a renda local, como fica? A renda local é um desdobramento quase natural da renda que ingressa desde fora! Não importa se ela entra com o “turista” de lazer ou de serviços, ou se ela ingressa com a “exportação” de uma mercadoria qualquer (soja, algodão, leite, cacau, tabaco, frango, coco, uva, etc.). Uma parte da renda que ingressa transforma-se em lucro e outra em salário. Parte do lucro se evade (todo ele, se os proprietários não são domiciliados na localidade) e parte é despendido na localidade. Mas, como regra geral todo o salário é despendido na comunidade, na padaria, no minimercado, na feira, na farmácia, no aluguel, na manicure, etc. E os agentes que recebem os valores despendidos – os padeiros, os feirantes, os farmacêuticos, as manicures – despendem novamente na comunidade, multiplicando o circuito de valor.

E é justamente aqui que se encontra a distinção entre agendas democrático-populares e agendas conservadoras de desenvolvimento. As agendas conservadoras buscam apenas o crescimento do PIB, não levando em conta o emprego e a renda internalizada. Um projeto democrático-popular deve tomar como critério primeiro de hierarquização de setores e cadeias a serem privilegiadas nas ações públicas aquelas que – direta e indiretamente – geram o maior número de empregos e que garantem a maior absorção interna de renda.

De qualquer forma, sempre e necessariamente, uma parte dos dispêndios irá se dirigir à aquisição de produtos “importados” de outras localidades. O que envolve pagamentos feitos ao “exterior da comunidade”, gerando um fluxo financeiro líquido para fora. Existem mecanismos para avaliar onde se dão os principais vazamentos para fora em cada município. E é possível desenvolver políticas para diminuir estes vazamentos, ampliando a multiplicação interna da renda. Um exemplo é a promoção do lazer na localidade (quando a juventude vai beber e comer na cidade vizinha). Outro, é a compra de produtos da agricultura familiar local e a comercialização destes produtos pelo comércio local. Evidentemente, esta segunda estratégia é bastante conhecida e já deve ter sido divulgada e propagandeada diversas vezes nas localidades. Não obstante, parece-me que o efeito pode ser distinto se o fizermos com um argumento técnico poderoso: calculando o multiplicador do emprego com base em informações da Relação Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e do Emprego e da Pesquisa Agrícola Municipal do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Com estas duas bases podemos mostrar quantos empregos se perdem num município por comprarem alimentos de fora ao invés de privilegiarem a agricultura local num programa municipal de apoio à agricultura familiar5.

Igualmente bem, é possível identificar quais são os elementos que impedem o aumento das vendas de qualquer bem de “exportação” de qualquer municipalidade. Como regra universal, existem gargalos, elos fracos, pontos específicos dentro da cadeia produtiva que impedem a expansão do fluxo de renda e elevam os custos de produção, tornando impossível a expansão das vendas ao preço de mercado. Se o gargalo é identificado, os investimentos necessários à sua superação se revelam menores do que usualmente se imagina e há viabilidade de, com a mobilização dos agentes locais (não necessariamente, agentes públicos, mas a comunidade), superá-lo adequadamente ampliando o fluxo de renda global.

Estas são estratégias de crescimento que são operativas até em situações de estagnação externa – vale dizer: quando as alternativas “1” ou “2” não estão operando; quando o país, o estado ou o exterior, não estão puxando o município. Mas elas são ainda mais operativas quando há crescimento “lá fora”. O que importa é que elas operam sempre.

Mais: este sistema de interpretação é, também, um sistema de planejamento. Ele está baseado em um sistema teórico bastante complexo, com base na Economia Política Clássica (Smith, Ricardo e Marx), na Matriz de Insumo-Produto de Leontief e na Teoria da Demanda Efetiva de Keynes e Kalecki. Mas, para além desta base geral, há três autores mais ligados aos princípios da Economia Regional e ao Planejamento que têm uma influência tão grande que merecem ser caracterizados como seminais: Douglass North e seu princípio de base de exportação, Elyahu Goldratt e seu princípio de priorização dos gargalos e Edith Penrose e sua teoria de inovação e crescimento. Os fundamentos teóricos aqui abordados são tratados minuciosamente no livro Fundamentos da Análise do Planejamento de Economias Regionais, de minha autoria. O livro está disponível para download em: http://paradoxoconsultoria.com.br/Arquivos/59b89ac32af741d5c78859c5eb5f102a.pdf

 

*Doutor em Economia, Consultor em Desenvolvimento Local e Regional, Presidente da Paradoxo Consultoria Econômica (http://paradoxoconsultoria.com.br), Professor e Vice Coordenador do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Faculdades Integradas de Taquara (RS) – FACCAT e Editor do Território Paiva (http://territoriopaiva.com.br).

2 Não é nosso objetivo neste trabalho discutir as importantes diferenças entre as dinâmicas de crescimento nacional “puxada” desde dentro e desde fora. Importa apenas salientar que, para um país como o Brasil, entre tantas diferenças encontra-se o fato de que um crescimento baseado em exportações para o exterior baseia-se em vantagens relativas naturais e elas estão centradas em produtos agrícolas e minerais de baixo valor agregado.

3 O problema de fundo da economia brasileira é a inconsistência de nossa política de combate à inflação com a sustentação da competitividade industrial. Controlamos a inflação com juros elevados. O resultado é o excesso de reservas cambiais e um real sobrevalorizado que expõe nossa indústria e leva à desindustrialização. Esta crise estrutural foi camuflada pelo boom das exportações de commodities para a China. Mas ela se revelou com a política fiscal adotada desde 2015 e foi constitucionalizada pela PEC do Teto de Temer-Meirelles. As reformas liberais que estão sendo postas em prática no Governo Bolsonaro, do meu ponto de vista, levarão ao aprofundamento da exposição competitiva industrial e, por extensão, da viveremos mais alguns anos de crescimento muito baixo. A este respeito é da maior importância acompanhar o debate sobre a Tarifa Externa Comum do Mercosul, que a equipe econômica insiste em rebaixar: https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,tarifa-deimportacao-pode-cair-ja-em-2020,70002971141.

4 Um município Polo de Serviços Complexos pode ser pensado como uma espécie de Shopping Center e seu visitante como uma família. Quanto mais diversificada a rede de serviços que ele ofertar maior a chance da “família” ir até ele, independentemente da distância. Assim como o shopping deve ter lojas de moda feminina e masculina, praça de alimentação, cinemas, lojas de brinquedos e videogames, livraria e estacionamento, uma cidade polo deve ter Universidade e sistema educacional de qualidade, Hospital e sistema de saúde de qualidade, Sistema de Assistência Técnica diversificado e de qualidade, Sistema de Assistência Jurídica, Contábil e Empresarial diversificado e qualificado, e sistema de comércio, lazer e gastronômico diversificado e qualificado. Além disso, é preciso entender que a diferença entre polo de serviços e turismo é muito sutil. Cada vez mais fala-se em Turismo de Serviços. De forma que um polo de serviços não precisa ser uma Gramado, mas tem que ter a estética como um de seus focos.

5 Evidentemente, este só é o caso se a agricultura 1) for familiar e 2) não for o núcleo central do sistema propulsivo do território (vale dizer, o núcleo de produção do bem de “exportação”, que gera a renda básica que movimenta toda a economia). Caso contrário, adotar uma estratégia de “substituição de importações” é adotar uma estratégia de crescimento em detrimento do crescimento alheio. Pois ao deixar de comprar de fora, se estará induzindo este território externo à depressão: ele deixará de vender e de produzir para seu cliente. E pode não encontrar outro cliente para seus produtos.