domingo, 10 novembro
Adão Villaverde. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Adão Villaverde (*)

Recentemente o insuspeito e respeitado jornalista especializado em ciência, Marcelo Leite. sentenciou: “o CNPq foi criado sob a liderança de um almirante; 70 anos depois, um capitão comanda a aniquilação da soberania nacional em pesquisa”.

Quase ato contínuo, o respeitado neurocientista reconhecido internacionalmente, Miguel Nicolelis, também afirma de forma impetuosa: “cortar bolsas de pesquisa é amputar as pernas intelectuais do país”.

O contexto, é neste momento, quando a ciência e a educação e, por decorrência a tecnologia e a inovação, sofrem seu maior ataque desde o início da República brasileira. E nosso arcabouço institucional que levou décadas e gerações para ser construído, às custas de muitos investimentos públicos de todos os governos, parece estar navegando aceleradamente para o colapso ou a submersão. Isto exige mais do que nunca, uma necessária e profunda reflexão.

A ironia com que o século XIX chegou ao seu final, teve forças ainda para fecundar conhecimento humano pelo mundo por mais de um século, e nosso país e a formação e criação de nossa capacidade científica se aproveitaram disto. Foi no século XX que processualmente, mesmo na condição de um país dependente, formou-se, foi implantado e se consolidou nosso capital científico e do conhecimento. Onde as noções de inteligência, Nação e Soberania, tinham um certo nexo causal, indo da sociedade civil, passando pelos governos e chegando inclusive a setores das Forças Armadas.

Foi neste período que em certa medida o caráter crítico do conhecimento resistiu a determinados espíritos conformistas ou mesmo regressivos. Não foi por nada que um dos principais alvos do regime autoritário implantado em 1964, foi a universidade e a academia. Ali em certa medida o iluminismo que habitava o século XVIII teve forças para dar luzes e projetar até os nossos tempos, tentáculos para se articular e resistir a qualquer desmonte ou desestruturação.

Mas os arautos do fim das utopias, e mestres em práticas regressivas e obscurantistas, sempre rondam o desenvolvimento sustentável e autônomo da humanidade. E pousam como donos da verdade, sempre acima de toda a crítica. Aparecem em cada momento histórico sob um determinado aspecto.

Na idade média, por exemplo, se abrigavam na autoridade de Aristóteles, confundiam-se com o obscuro mito da religião e com o poder feudal. Hoje esta realidade configura-se também como um aspecto de barbárie do nosso tempo, embora certamente não possa ser identificado como inocência ou desconhecimento este brutal ataque que setores do conhecimento e da inteligência do país vêm sofrendo.

Isto tem nome e atende pelo que se denominou caracterizar de regressão e conservadorismo, e abriga-se na difusa, poderosa, e não menos mitológica, prática autoritária e obscurantista.

A realidade é que o obscurantismo, e todo seu séquito de seguidores, se sentem autorizados em quererem implantar um período de ausência de discernimento nas relações em sociedade. Por isso quando olhamos o que nos rodeia, vemos a tentativa de implementação do reino do acriticismo, que não admite sequer a ironia, quanto mais o conceito. Justamente aquele legado iluminista fundamental que chegou até nós e, que produziu e reproduziu, os sonhos de muitas gerações.

Entretanto as ideias regressivas e obscurantista, todos sabemos, são tão antigas quanto o mundo humano. Aliás, que se reproduziram antes e se reproduzem ainda hoje mutuamente. Elas abominam a reflexão, a dúvida e o conhecimento, porque os conceitos que daí derivam, podem realizar inclusive sua crítica de forma mordaz, mas mais fortemente aquela que é totalmente insuportável, qual seja, a da razão.

É possível ler a história das sociedades modernas como a do frágil equilíbrio entre o iluminismo e o obscurantismo, entre o conceito e o acriticismo. E neste singular momento que nos foi dado viver, já não se pode falar deste equilíbrio. Infelizmente está se efetivando uma ruptura, os pratos da balança descem no sentido das determinações da regressão, em detrimento daquelas do conhecimento, da inteligência, da instigação e da razão, das determinações por excelência, humanas. Ou seja, o prato desceu na direção de determinações obscurantistas que se confundem e se identificam com um tempo conformista ou melhor acríticos e regressivos.

Um mundo assim, onde sonhos e utopias, terminam confundidos a medíocres desejos de consumo e de vivências e relações particularistas, traz consequências de nos deparamos com um universo ausente de sonhos, privado da fugidia e essencial sensibilidade das quimeras.

Daí porque brutalizam a vida cotidiana, adotam a repulsa como sua principal “arma” política e tornam cegos, por exemplo, momentos como o da bela transição de nossos sempre tenebrosos invernos para os nossos espetáculos florais primaveris.

Num mundo assim, não há nada a estranhar, que palavras, por exemplo, como segurança e estabilidade possam adquirir tom de idílicas promessas para todos aqueles que insegurança e instabilidade constituam apenas um outro nome, para as formas precárias com que vivem seu pertencimento à sociedade humana.

E a partir da ruptura daquele equilíbrio que referimos acima, do ponto de vista específico, da ciência, instaura-se outra lógica, seja sobre seus fundamentos filosóficos, seja sobre seus procedimentos epistemológicos. É o advento do feroz particularismo que nos é imposto para vencer no despiedado jogo da implantação do retrocesso.

Alimentam furiosamente nossa vida pessoal e diária, atingem a ciência, destroem sua vocação universal, e acabam por deixar-nos entre as mãos um estreito relativismo, sem qualquer noção universal da importância do conhecimento e da inteligência.

E o que os nutre, é a contingência de uma verdade que, perversamente, equivale a sobreposição dos valores dos vencedores sobre os vencidos, sem serem capazes de perceber, que uns apenas podem construir suas esperanças ao preço de semearem desesperos e desesperados entre outros.

Infelizmente o brutal ataque ao conhecimento e a educação, parece acelerar caminho para aquilo que se cunhou na história “que ela se repete como tragédia ou farsa”. E esta área tão estratégica para uma Nação e sua Soberania, parece que se transformará numa “moderna Atlântida”, o paradoxal continente que foi coberto pelo mar. Uma vez que, precisamente os setores e áreas que mais necessitariam serem apoiados, na era da sociedade do conhecimento, poderão submergir pelo desmonte obscurantista, sem deixar vestígios e traços de uma legenda, como sua ancestral marítima.

Recapturar, pois, o caráter crítico do saber, implicaria em interditar este processo e contrariar o espírito absoluto, determinante e exclusivo de obscurantismo deste tempo. Isto remeteria em síntese à necessidade de se buscar reencontrar o processo da razão, contra o da irracionalidade, que só nutre ódios e dicotomias, fazendo agudizar a paralisia e os enormes desafios que nos separam como Nação do século 21 e da chamada Sociedade do Conhecimento.

(*) Professor, engenheiro, ex-secretário de Estado e ex-presidente da AL/RS

Fonte: Sul21

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