Das decisões mais simples às mais drásticas, assistimos a mudanças relevantes O tipo de desenvolvimento de uma sociedade pode ser caracterizado por feixes complexos de relações: da sociedade com a natureza (meio ambiente), da sociedade nacional com as demais sociedades (relações exteriores), dos membros da sociedade entre si (direitos humanos) e entre gerações (educação), havendo entrelaçamentos sistêmicos através da economia e da cultura, afetadas por decisões políticas.
Todos esses temas geradores exigem conhecimentos específicos, e os especialistas em geral acabam por tratá-los de forma compartimentada e segregada. Contudo, essas relações compõem um todo a partir de diversas visões de mundo, “filosofias” que organizam nossa evolução, em meio a conflitos nem sempre superáveis. A opinião pública recebe as informações sobre as várias temáticas de forma parcelada e fragmentada, tendo assim dificuldades de compor o todo.
Uma das limitações do jornalismo é justamente a contradição inerente à atividade, que pretende comunicar o parcial com imparcialidade; o que não é possível, pois nenhum recorte pode ser neutro, por carregar, implícita ou explicitamente, interesses e visões próprias.
Essa conversa semanal, que neste sábado iniciamos, vai procurar apenas atenuar estas circunstâncias paradoxais, não se atendo às discussões sobre o tipo de “modelo” que o atual governo de forma confusa parece querer patrocinar.
A democracia exige oposição. O que é saudável e necessita ser visto até pelos apoiadores do governo como um direito legítimo de contar com forças sociais que ampliam o repertório para testar convicções, a depender da qualidade dos argumentos. Uma das contribuições que posso dar, nesse sentido, é tentar mostrar as conexões das partes com o todo e explorar alternativas.
Armar a população, desqualificar a universidade pública, defender a submissão das mulheres e dos afrodescendentes, estimular a humilhação da comunidade LGBT, ameaçar as artes e a ciência, lançar suspeitas sobre professoras, entregar patrimônio público ao setor privado, enaltecer ditadores, cultivar a intolerância internacional e desrespeitar o meio ambiente: das decisões mais simples às mais drásticas, acredito que assistimos a mudanças que alteram substancialmente o feixe de relações a que me referi.
Não estamos, portanto, diante de um mero ajuste fiscal, nem da adoção de um projeto liberal contra o tal “marxismo cultural”, mas do ataque a algumas das premissas do próprio humanismo.
Em verdade, a atual agenda econômica e cultural parece mais sintonizada com um processo de embrutecimento nas áreas do meio ambiente, relações exteriores, direitos humanos e educação. O debate sobre ela é vital.
Fernando Haddad
Professor universitário, ex-ministro da Educação (governos Lula e Dilma) e ex-prefeito de São Paulo.