quinta-feira, 21 novembro

Na avaliação do ex-ministro e ex-governador, posição de Marco Aurélio Mello corrige “entendimento praticamente revogatório da Constituição”

Membro histórico do PT e ministro dos governos Lula, o ex-governador Tarso Genro avalia como correta a decisão do ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), de determinar a soltura de condenados em 2ª instância. A medida pode beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que está na carceragem de Polícia Federal (PF) em Curitiba.

Como o senhor avalia a decisão do ministro Marco Aurélio de soltar condenados em 2ª instância?
Entendo que é uma decisão correta, porque a Constituição Federal é clara em vincular a manutenção do princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da pena. Isso está claro. Estamos, na verdade, sob decisões jovens, recentes, que levaram a um entendimento praticamente revogatório da Constituição. Agora, essa decisão está corrigindo. Se vai ser mantida ou não, sabemos que tem uma série de fatores que influem nas decisões do Supremo, é impossível de prever. Entendo que a decisão é correta: quem está no plantão despachando representa a instituição. O entendimento da Constituição, que é universal, de que presunção de inocência vai até o trânsito em julgado, foi vulnerado de maneira absolutamente imprevisível (dois anos atrás).

 

Mas uma decisão monocrática que vai em sentido contrário ao entendimento do plenário do STF também não causa insegurança jurídica?


Acho que não. O que causa insegurança jurídica é uma decisão colegiada que ofende disposição literal da Constituição. São dois valores diferentes. Uma decisão monocrática que está delegada para aquele ministro para ser dada através do regimento defere a ele a representação da Corte. O que tinha ocorrido anteriormente era uma coisa extremamente grave, uma decisão colegiada por um voto mudou a Constituição. E a Constituição, sabemos, é originária de um processo constituinte complexo, que discute valores, que passa pelo aferimento popular. Então, a gravidade está na decisão anterior, por 6 a 5, revogatória de um dispositivo literal da Constituição. O que provocou profunda lesão no tecido constitucional e na normalidade política do país foi a decisão anterior, que entendeu que a Constituição não valia para os casos que eles julgavam importantes politicamente. Isso não existe, é um absurdo jurídico completo, que causa arrepio em qualquer jurista mediano.

 

O senhor, que é jurista e foi colega do ministro Dias Toffoli, presidente do STF, acredita que ele pode derrubar a decisão do ministro Marco Aurélio? 


Se pode ser derrubada? Dentro da lógica adotada até agora, pode. Porque existe um precedente que revogou a Constituição, revogou direitos, transformou a Constituição numa espécie de referência secundária para os julgamentos. Foi quando se decidiu por 6 a 5 que o princípio da presunção da inocência não avançava até o trânsito em julgado, embora a Constituição diga o contrário. Como já houve essa decisão anterior, no Brasil, hoje tudo se pode esperar.

 

O fato de a decisão desta quarta-feira ter sido dois meses depois de uma eleição em que o ex-presidente Lula era favorito tem algum reflexo político? Dá cara de ilegitimidade para a eleição?
Acho que essa eleição já foi ilegítima. Foi uma eleição onde o principal contendor da extrema direita estava preso através de decisão não transitada em julgado. Então, já existe um processo de ilegitimidade. Acho o contrário: uma decisão como essa pode pacificar o país e valorizar a esfera da política. E as forças políticas podem entrar em entendimento para preservar a normalidade democrática do Brasil. A situação está muito radicalizada. Temos um presidente que conseguiu assumir a presidência do país (Bolsonaro) mesmo dizendo que tinha de matar 30 mil pessoas, o que é incitação ao crime. Vivemos numa situação de exceção, de ilegalidade permanente. Essa decisão de dois anos atrás gerou a deformidade nesse processo eleitoral. Uma decisão como essa, se for mantida, se for aplicada rapidamente, pode se voltar para o congraçamento do país, para a retomada do diálogo político.

O ex-juiz Sergio Moro, que ganhou repercussão na Operação Lava-Jato e foi apoiado quando escolhido ministro pelo presidente eleito, é favorável à prisão em 2ª instância. O senhor acredita que, na visão da população, a decisão não agride a Lava-Jato, por exemplo?
Depende do ponto de vista. Tem pessoas que acreditam que Moro foi um juiz justo. Na minha visão, foi um agente político de um processo de desestabilização do sistema constitucional brasileiro. Ele cometeu, contra o Lula — e talvez em outros processos, acompanhei mais o do Lula — uma série de arbitrariedades, violação de direitos, divulgação de gravações da presidenta Dilma, produção de notícias manipuladas sobre processos, sobre provas, fez um processo praticamente público, que gerou na população uma admiração por ele. Mal sabia a população que, na verdade, era um agente político, como se comprovou com sua nomeação como ministro, para retirar o presidente Lula do processo eleitoral e, com isso, permitir a a eleição de um candidato de extrema direita que envergonha o Brasil em escala mundial. Suas decisões diante desses fatos deveriam ser consideradas nulas pelo Supremo, porque, na verdade, todas as arbitrariedades que ele cometeu — e sofreu observações do próprio Conselho Nacional de Justiça — transformaram ele em ministro da Justiça. A Lava-Jato não precisava prender o presidente Lula, não precisava prender pessoas injustamente, como ocorreu. Ela teve mérito suficiente para mostrar que a Justiça brasileira, quando quer, funciona. Agora, ela foi instrumentalizada a partir de um certo ponto para participar de um contencioso político no país.

 

A defesa do ex-presidente Lula já protocolou pedido de soltura. Ele já sabe?
Não sei. Soube pelos órgão de imprensa. Não fiz contato com colegas que estão o atendendo nem com os quadros políticos que estão junto com o presidente.

 

Para o senhor, é uma surpresa essa decisão?
Para mim, é uma surpresa porque a maioria do Supremo estava temeroso do espírito de turba que se formou na opinião pública e que levou o Supremo a determinadas decisões completamente inconstitucionais. Houve um cerco de formação de opinião pública negativa a respeito de tudo que diz respeito ao passado no Brasil. Não só ao Lula: ao Fernando Henrique, a todo mundo. Houve uma destruição da esfera da política. O que vem da consciência mais atrasada do povo é o espírito de vingança, e o espírito de vingança é o pai do fascismo. E é isso que vimos com a eleição do Bolsonaro. Para mim, foi uma surpresa positiva essa decisão do Marco Aurélio. Isso não quer dizer que Lula, se for julgado culpado, se transitar em julgado sua sentença, que não deva cumprir. Acho que deve cumprir. Mas não é o que está acontecendo. O que está acontecendo é que Lula está cumprindo uma sentença que não transitou em julgado.

 

O PT fez uma campanha com o nome do ex-presidente como candidato até substituí-lo por Fernando Haddad. Havia uma esperança de que essa decisão pudesse sair mais cedo.
Eu, sinceramente, não tinha. Sempre achei que Lula ia ficar preso até elegerem outra pessoa para governar o país. Não foi de graça que a Lava-Jato operou de maneira concentrada, articulada com a grande mídia, para desqualificar o presidente Lula, como se ele fosse um delinquente. Todo mundo sabe que governantes cometem erros e acertos. O presidente Lula foi o maior presidente que o Brasil teve nos últimos 50 anos.

 

O senhor falou em cumprimento da Constituição. A Justiça fica fortalecia com essa decisão?
Se ela for aplicada, sim. O grande drama do Supremo hoje em dia é se mantém ou não a posição de guardião da Constituição. Doa a quem doer: doa na esquerda, doa na direita, doa no centro. Esse drama é o drama shakespeariano do Supremo Tribunal Federal. Ser ou não ser o guardião da Constituição? O guardião da Constituição é aquele que pega os elementos centrais da Constituição e os transforma em matrizes da vida política, da vida econômica e da vida social do país. O Supremo tem declinado de ser o guardião da Constituição porque tem feito concessões demasiadas à política, tem aceito pressões inaceitáveis num país civilizado.

 

Entrevista concedida a GaúchaZH.

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