São Borja sediou nesta sexta-feira (9/05), no Plenário da Câmara de Vereadores, a quinta audiência pública da Comissão Especial criada pela Assembleia Legislativa para discutir o piso salarial e condições de trabalho da enfermagem gaúcha e dos profissionais de saúde. O encontro, o quinto de um total de 13 audiências que serão organizadas até agosto em todas as macrorregiões da saúde no estado, contou com a coordenação do deputado Valdeci Oliveira, proponente da criação do colegiado.
A exemplo dos encontros anteriores, a reunião contou com a participação de enfermeiras e enfermeiros, representações sindicais, da gestão pública e de hospitais, além de vereadores, e apontou, novamente, que a lei do piso, na imensa maioria dos casos, não vem sendo cumprida na sua totalidade, assim como as condições de trabalho, cujas cargas horárias e ritmos exaustivos se somam à necessidade de se ter mais de um emprego para manter as contas do mês em dia.
Juntamente a isso, foi relatado que um canal criado nas redes sociais vem sendo utilizado para expor, cobrar e constranger publicamente os profissionais, como se fossem os trabalhadores os verdadeiros responsáveis pelos eventuais problemas que inevitavelmente ocorrem quando se fala em saúde pública. Comentários desabonadores por conta de situações que não ocorreram da forma narrada por quem ataca, xingamentos, além de agressões verbais que recaem na esfera da injúria, um crime contra a honra, abalam emocionalmente as vítimas e fazem parte da realidade.
“Colocam o que querem, passam a versão deles. Estamos expostos a esse tipo de agressão aqui, nos chamam de tudo quanto é nome, de vaca e outros animais, e colocam tudo lá. Isso afeta a nossa saúde mental. Tem profissionais com a situação (psicológica) bem complicada”, afirmou Fábia Argenta, enfermeira há 12 anos no serviço de saúde do município. Para ela, a questão do piso, matéria a ser legislada na esfera federal, foi mal formulada, tanto em valores quanto na falta de um indexador de reajuste anual.
“E se continuar assim, o salário mínimo (cuja política retomada pelo governo Federal tem proporcionado o seu aumento real nos últimos dois anos) vai passar do nosso piso. E tem ainda as 30 horas semanais e a insalubridade, que é paga sobre o salário mínimo e não sobre o nosso básico, fazendo com que a gente receba R$ 300,00, enquanto estamos lá na ponta atendendo pacientes com tuberculose e com risco de nos ferirmos (com material contaminado). A gente aguarda que sejam feitas melhorias”, pontuou.
“É preciso ter a compreensão que sem pressão não haverá mudança. E se o piso foi aprovado, mesmo nessas condições, ‘picotado’, foi em função da pandemia e ao apelo da sociedade naquele momento. A luta e a vigilância permanentes são fundamentais”, destacou Valdeci, em referência à negociação feita em 2022 que, por conta do pesado ‘lobbie’ capitaneado pelas entidades privadas, o valor baixou de pouco mais de R$ 7 mil, que era o reivindicado pela categoria, para os atuais R$ 4.750 para 44 horas semanais (e sem garantia de recomposição sequer da inflação).
E isso para que o projeto não sofresse resistências no Congresso Nacional e, ao contrário das outras tentativas realizadas nas últimas décadas, fosse adiante e aprovado. “A avaliação do STF – que referendou o modelo – foi equivocada, mas é o que está valendo. E mesmo assim muitos não cumprem sequer isso”, criticou o parlamentar. Apesar de alcançarem o piso, assim como em outras regiões essa diferença é paga pelo município na forma de repasse completivo e não incorporada ao salário, resultando em perdas sobre vantagens, férias, adicionais e à própria aposentadoria.
Em São Borja, a única instituição a pagar da forma correta, a partir da negociação estabelecida com o Sindisaúde, é o Hospital Infantil Ivan Goulart, que padronizou o procedimento e fez a incorporação ao básico que vinha sendo pago antes da lei – mas sem o necessário reajuste.
“Toda profissão é digna de respeito e de cuidado, mas na saúde lidamos todo dia e toda hora com a vida e com a morte. Os profissionais da saúde estão lá para prestarem atendimento, mas eles precisam, mais do que nunca, também serem cuidados, ajudados. Esse local hoje deveria estar cheio, pois não é só pelos profissionais que a gente batalha, mas pela sociedade toda. Os vereadores que foram eleitos pelos são-borjenses deveriam estar aqui prestando sua solidariedade. A comunidade de São Borja deveria estar aqui, os usuários do SUS deveriam estar aqui. Todo mundo quer ser bem atendido, ter um serviço de excelência, mas na hora de enfrentar e ir à luta são poucos (que aparecem)”, protestou Neusa Rambo, técnica de enfermagem aposentada e ex-presidente do sindicato da categoria.
Já a atual presidente do Sindisaúde do município de Santiago, Margarete Resmini, relatou as dificuldades encontradas pela entidade para colocar o complemento nos acordos coletivos, visto que os hospitais privados alegam não ter recursos para tal, mesmo que diversos deles, nas 11 cidades que pertencem à base de atuação da entidade, estejam constantemente em reformas e ampliação. “Tem para obra mas não tem para o ser humano, que sofre assédio e trabalha doente”, criticou, destacando ainda o problema do ensino a distância na formação de técnicos, cujos salários na região não chegam a R$ 2 mil, e ,segundo ela, se formam com uma ou duas aulas por semana, além de ser comum estagiários atuarem sem acompanhamento ou supervisão adequada nas unidades de saúde.
A demora em receber o complemento, que chega no início do mês, mas é repassado aos trabalhadores apenas no último dia útil do período, e os descontos abusivos feitos nos valores também foram problemas relatados. “Não se pode tolerar que a lei aprovada, que é um direito, não seja efetivada em sua plenitude. Completivo não é piso e descontar valores de hora extra do complemento, como vem ocorrendo em alguns municípios, é completamente irregular, ilegal. Certamente haverá muita ação trabalhista por conta desta forma equivocada e mal-intencionada que alguns atuam para burlar a legislação”, avaliou Valdeci.
Sobre o argumento de que faltam recursos para a efetivação completa do piso salarial, Ismael Miranda da Rosa, do Sindicato dos Enfermeiros do RS (Sergs), lembrou que o governo do Estado há anos não aplica os 12% previstos em lei na saúde pública, o que implica negativamente no financiamento dos direitos dos trabalhadores. Além disso, destacou o dirigente, de qualquer forma o discurso do Executivo gaúcho não se sustentaria, pois está inserido no contexto em que o Estado vem recebendo uma gama considerável de recursos federais desde 2021, com o advento da Covid-19, assim como a partir de maio do ano passado, por conta da enchente que castigou o RS.
“Recursos não faltam. O que falta é vontade política”, sustentou. “O atual repasse tem tempo determinado, está na lei, pois o governo Federal não irá financiar a vida inteira a diferença para se chegar ao piso. As entidades públicas do Estado, assim como os gestores municipais e privados precisam incorporar os valores na Carteira Profissional dos trabalhadores. Não tem que prorrogar mais, não é por falta de dinheiro. Saímos de uma pandemia e agora estamos numa epidemia de dengue onde novamente a enfermagem está sendo fundamental na atenção primária de saúde para atender a população e dar os encaminhamentos necessários”, completou Ricardo Tolla, do Conselho Regional de Enfermagem do RS (Coren).
De acordo com cálculos realizados por técnicos de órgãos públicos de fiscalização e controle, o RS, somente no ano passado, deixou de aplicar mais de R$ 1,2 bi na saúde por conta do não cumprimento do que estipulado na Constituição estadual. Na avaliação de Valdeci, essa espécie de ‘desfinanciamento’ faz, de forma negativa, uma enorme diferença para o setor. “Por isso que lutar e se mobilizar pela aprovação da PEC 19/2024, que garante o piso vinculado a uma jornada de 30 horas, sem redução de salário, e reajuste anual dos valores, deve ser um movimento fundamental a ser feito por nós e pela categoria”, defendeu.
Já o adoecimento da categoria, como reflexo das condições de trabalho a que está sujeita, foi demonstrado a partir de alguns dados da pesquisa realizada em 2023 pelo Coren, que apontam a prevalência do adoecimento mental, em que 58% das enfermeiras, técnicos e auxiliares são acometidos pela Síndrome de Burnout, também chamada de Síndrome do Esgotamento Profissional. O distúrbio emocional seria um sintoma causado pela exaustão, estresse e esgotamento físico ocasionado pela realização de atividade desgastante. Outros 40% ainda relatam ansiedade generalizada, 62% atuam em jornadas excessivas, com mais de 12 horas diárias, e 35% apontam insuficiência de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), o que gera medo e insegurança.
Legislação do piso – A lei nº 14.432/22, além de prever um mínimo de R$ 4.750 a ser pago a enfermeiras e enfermeiros, garante ainda 70% desse valor (R$ 3.325) a técnicos e 50% a auxiliares e parteiras (R$ 2.375). Desde sua implementação, o Ministério da Saúde já repassou mais de R$ 20 bilhões via Assistência Financeira Complementar (AFC) aos entes federados para que estes realizem o pagamento do piso dos trabalhadores da categoria.
Outras audiências – Também deverão sediar audiências as cidades de Caxias do Sul, Cachoeira do Sul, Erechim, Passo Fundo, Porto Alegre, Santa Rosa, Santa Maria e Tramandaí. Conjuntamente às audiências públicas, estão sendo realizadas visitas técnicas em estabelecimentos de saúde, cujas informações constarão no relatório a ser apresentado em agosto com sugestões e indicativos a gestores públicos, estado, Ministério Público, União e ao próprio Parlamento estadual.
Participações – Compareceram também ao encontro os vereadores Arlei FeLu, de São Borja, e Rogério Moraes, de Santo Antônio das Missões; Milton Kempfer (Feessers), Cláudio Vieira (Secretaria Municipal de Saúde), Eloísa Azevedo, (Sindisaúde) e Edson Meireles (Hospital Infantil Ivan Goulart), entre outras representações sociais.
Texto: Tiago Machado (MTE 9.415) e Marcelo Antunes (MTE 8.511)
Fotos: Christiano Ercolani