terça-feira, 29 abril

 

 

Bagé sediou na noite de segunda-feira (28), no plenário da Câmara de Vereadores, a terceira audiência pública regional organizada pela Comissão Especial da Assembleia Legislativa com o objetivo de discutir a implementação do piso salarial da enfermagem e as condições de trabalho dos profissionais da saúde em geral. O encontro reuniu representações sindicais, trabalhadores da enfermagem de diferentes unidades de saúde da região, vereadores, prefeitura e servidores municipais, entre outros.

Aprovada em 2022 pelo Congresso Nacional, a lei nº 14.432/22, que instituiu o piso básico desses profissionais – incluindo técnicos, auxiliares e parteiras -, não vem, de acordo com o relato de entidades sindicais da categoria e corroborado por depoimentos de diferentes servidores, sendo colocada em prática no RS, tanto em hospitais privados e filantrópicos como públicos estaduais e municipais, incluindo aqueles cuja gestão é privada. Na prática, alguns poucos estariam cumprindo a legislação, principalmente os públicos, que recebem repasse mensal feito pelo Ministério da Saúde para garantir os valores na sua integralidade na forma de complemento. Outros, nem isso. Mesmo assim, inúmeros não incorporam o valor repassado pelo governo federal desde 2023, quando teve início sua implementação, no salário que vinha sendo pago, o que resulta na sua não incidência sobre demais ganhos, como avanços e aposentadoria. Pela lei, o piso básico da enfermagem consiste numa remuneração mínima de R$ 4.750 a enfermeiros, 70% desse valor (R$ 3.325) a técnicos e 50% a auxiliares e parteiras (R$ 2.375). Mas muitos gestores têm interpretado a legislação de forma que acabam criando dificuldades para a efetivação da lei. Os relatos ainda apontam a “Pejotização”, com a contratação de recursos humanos por meio de Pessoa Jurídica e profissionais ganhando R$ 841,00 mensais como salário-base. O quadro mostrado em Bagé reforça o que já foi relatado nos encontros realizados em Cruz Alta (25/4) e Pelotas (28/4).

“Nós entendemos que uma lei aprovada precisa ser cumprida, principalmente para uma categoria extremamente importante, uma categoria que entrega sua vida para salvar vidas. Na pandemia, eram valorizados, aplaudidos e homenageados com lençóis nas fachadas. Ótimo, mereciam, mas não basta só isso. É fundamental que sejam valorizados, que tenham garantido o que é determinação legal. O que queremos com essa Comissão Especial, que está rodando o estado, é termos uma radiografia da questão do piso e das condições de trabalho. É sabido que é uma categoria que tem duas, três jornadas para sobreviver e tem um adoecimento muito grande pelo volume de trabalho e condições muitas vezes precárias. E o que é devido não é pago como deveria ser, não tem o valor que deveria ter”, afirmou o deputado Valdeci Oliveira, proponente e presidente da Comissão Especial.

O Colegiado, multipartidário, é formado por 12 deputados e deputadas de dez diferentes partidos e realizará esse trabalho de discutir e levantar informações pelos próximos quatro meses, com apresentação de um relatório ao final do período, previsto para agosto. Além de audiências públicas, também estão sendo realizadas visitas técnicas a hospitais públicos e privados.

Na avaliação do médico e vereador Dr. Leopoldo, apesar de algum avanço, os técnicos e técnicas estão muito aquém do que lhes é justo como remuneração, pois trabalham em turnos desgastantes, em plantões em finais de semana, feriados, e final de ano em jornadas de 12h por 36h ou das 8h às 20h, além de que muitos hospitais atrasam os já pequenos salários e não remuneram férias. “Aqui em Bagé temos uma realidade de baixos salários e uma população fragilizada pela vulnerabilidade de seus ganhos e poucas oportunidades de emprego, a ponto de que, se chega uma grande loja (na cidade), se deixa de trabalhar no hospital para trabalhar no comércio”, afirmou. “Como regra, quando se chega num posto de saúde, numa UPA, num pronto-socorro ou dentro de um hospital acamado, a gente recebe muito mais visitas e atenção, como regra, dos profissionais da enfermagem, que estão ali como ponta de lança para cuidar da gente e nos amparar, inclusive psicologicamente, com acolhimento que vai para além das questões óbvias, da saúde”, reforçou o colega de legislativo Lucas Melo.

Avaliação crítica também foi feita pela presidente do SindiSaúde de Bagé, Ana Rita Del Pino, para quem o tão sonhado piso salarial virou pesadelo para muitos profissionais. “Temos diversos colegas que, passados três anos, ainda não receberam o piso, outros o recebem como complemento que não está somando para nada (na incorporação) e com a insegurança de que em 2027 não tenhamos mais. A enfermagem nunca tem paz. Parece que todos estão contra os trabalhadores da saúde. Precisamos garantir respeito e dignidade”, afirmou. Outros fatos presentes no debate e destacado por diversas lideranças que participaram do encontro disse respeito à jornada de trabalho de 30 horas semanais (vinculada aos valores dos respectivos pisos), locais de descanso dignos e reajuste dos rendimentos básicos. “Conseguimos impugnar mais de 17 processos de concursos públicos em municípios com salários inferiores ao que diz a lei e tem empresas contratando técnicos de enfermagem como cuidadores, uma questão trabalhista que é um crime”, denunciou Luis Fernando Noronha dos Reis, conselheiro do Coren/RS, demonstrando como o segmento é tratado por diversas administrações municipais. “A implementação do piso é uma conquista histórica, resultado de anos de luta e reconhecimento da essencialidade da profissão. A valorização da enfermagem leva ao fortalecimento do sistema de saúde”, avaliou Nilza Lourenço da Silva, representante do Conselho Nacional dos Técnicos de Enfermagem (Conatenf).

Questões relativas à judicialização e pouca transparência também foram trazidas à audiência. Segundo Milton Kempfer, da Federação dos Empregados em Estabelecimentos e Serviços de Saúde do RS (FEESSERS), diante da aprovação da lei do piso em 2022, o segmento privado, por meio de entidades patronais, ingressou no STF e descaracterizou a legislação ao retirar dos estados, prefeituras e hospitais filantrópicos a responsabilidade de cumprimento do piso, jogando tudo para o complemento através do governo federal. “E também gerou uma confusão muito grande, pois cada Instituição coloca os dados dos profissionais (no sistema do Ministério da Saúde) e cada um recebe um tipo de valor. E não sabemos se está certo ou errado por não conseguirmos apurar, uma vez que os hospitais alegam a lei de proteção de dados. Isso vai gerar muitas ações trabalhistas no futuro”, completou Kempfer, citando ainda haver dificuldades das gestões hospitalares em aceitar o diálogo. Fora isso, a questão do modelo que vem sendo adotado pelo município de não realizar concursos para a área da saúde, mas contratar profissionais por uma suposta cooperativa, que poderia ser utilizada para não pagar encargos.

Para a dirigente Inara Ruas, que atua no Sindicato dos Enfermeiros do RS, no Conselho Estadual de Saúde e na Federação Nacional dos Enfermeiros, a pauta da categoria é a jornada de trabalho e o piso salarial, que vem sendo aviltado. “Tem muitos patrões que o transformaram em teto (máximo a ser pago) e usam as vantagens (extra remuneração básica) para chegar ao valor previsto em lei. “Isso em alguns lugares, porque em Bagé sequer isso acontece. E ter um salário de R$ 841 não é um privilégio do município, pois o governo do estado fez um concurso para técnicos com esse mesmo valor em 2023. Defendemos a carreira SUS, com isonomia, com as pessoas com a mesma função ganhando o mesmo salário em todo o país”, pontuou Ruas. Uma profissional do município presente no plenário da audiência confirmou receber este valor mensalmente e fez um pedido: “A nossa esperança é que ele aumente. Estamos com esse valor congelado há sete anos. É uma luta grande da categoria por dignidade. Na época da (pandemia) da covid éramos vistos como heróis e hoje somos taxados quase como vilões, pois acham que o mínimo que estamos recebendo é muito. Pedimos apoio da sociedade, da prefeitura, dos políticos. Receber abaixo do salário mínimo é indigno. Temos uma colega que vai se aposentar esse ano e provavelmente ela não receberá o valor do piso, com todos os avanços que conquistou, com todos os anos que ela doou. Ela não terá essa dignidade, terá de buscar na Justiça”, afirmou.

Ao final do encontro, após várias falas que reiteraram uma sequência de descumprimento da legislação, falta de espaços para descanso intrajornada e condições de trabalho precarizadas, Valdeci reiterou aos profissionais da enfermagem presentes que o papel da Comissão Especial é levar o debate para todos os cantos do Rio Grande, para as autoridades e gestores. “Tem  muita gente da sociedade, gente que vocês cuidam, que vocês atendem, que vocês dão atenção e que não sabem das dificuldades que vocês passam, como vocês são tratados. Organizar uma grande mobilização pela aprovação da PEC 19/2024, garantindo o piso vinculado à jornada de 30 horas e reajuste anual deve ser a condição mínima a ser feita. Alguns até podem tentar criar um cenário de dúvida, mas não será por falta de repasse do governo federal que vocês não irão receber aquilo que é de direito. Tanto o orçamento atual quanto as recomposições orçamentárias que estão sendo feitas dão essa garantia. O que se está buscando também é dar mais transparência ao processo, superar a questão do sigilo de dados para que todos possam se enxergar e saber de fato o que cada um e cada uma recebe”, sentenciou o deputado. Segundo Valdeci, essa será, inclusive, uma das pautas que será levada à audiência que terá com Felipe Proenço, gestor do Ministério da Saúde responsável pelo tema na pasta e que deverá vir ao Rio Grande do Sul nas próximas semanas.

Uma ida a Brasília, para encontros com o relator da PEC 19, o senador Fabiano Contarato (PT-ES), também autor da lei do piso, e com o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, para apresentar a situação vivenciada pela categoria no estado, está sendo organizada pela Comissão.

A série de 13 audiências previstas irá acontecer até em todas as macrorregiões de saúde do RS e contemplará ainda os municípios de Caxias do Sul, Cachoeira do Sul, Erechim, Passo Fundo, Porto Alegre, São Borja, São Gabriel, Santa Rosa, Santa Maria e Tramandaí.  

Texto: Tiago Machado – MTE 9.415 Marcelo Antunes – MTE 8.511
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