sexta-feira, 30 maio

 

 

O plenário da Câmara de Vereadores de Santa Rosa foi o palco, na noite de quinta-feira (29), da audiência pública regional que debateu a implementação do piso salarial da enfermagem e as condições de trabalho dos profissionais da saúde em geral no RS. Organizada pela Comissão Especial da Assembleia Legislativa criada para este fim, e coordenada pelo deputado Valdeci Oliveira, proponente do colegiado, o encontro reuniu, no plenário da Câmara de Vereadores, entidades de classe da enfermagem e lideranças sociais e políticas, entre outros. Como em encontros anteriores, realizados em municípios de diferentes regiões, a audiência pública mostrou uma situação preocupante: falta de pessoal, piso pago como complemento, descontos indevidos e insegurança jurídica.

“Nós estamos tratando dessa matéria, seja o piso ou as 30 horas semanais, desde pelo menos 2012, quando constituímos na Assembleia Legislativa uma Frente Parlamentar em defesa dessas duas pautas”, explicou Valdeci. Aprovada em 2022 pelo Congresso Nacional, a Lei nº 14.432/22 instituiu como piso básico da enfermagem – incluindo técnicos, auxiliares e parteiras – o mínimo de R$ 4.750 a enfermeiros, 70% desse valor (R$ 3.325) a técnicos e 50% a auxiliares e parteiras R$ 2.375. Porém, diversas instituições públicas, privadas e filantrópicas têm interpretado a legislação de forma equivocada, criando dificuldades para que esses profissionais, que envolvem, no RS, cerca de 160 mil pessoas (sendo 85% mulheres), efetivamente recebam o pagamento de forma integral ou correta.  Na abertura dos trabalhos, Valdeci destacou ainda que, apesar da frustração da categoria em relação aos valores negociados como condição para o projeto angariar os votos suficientes no Congresso, o piso sofreu a judicialização da sua aplicação, com o STF, a partir de uma ação contrária da classe patronal, arbitrando e alterando alguns pontos. “Apesar de uma conquista, foi uma mescla com frustração. Mesmo com uma regra diminuída nos seus valores, uma boa parcela dos empregadores não cumpre sequer a lei que foi aprovada”, frisou o parlamentar.

“Ao ser sancionado (no governo passado), o piso teve seu reajuste anual vetado. E, no STF, foi desconfigurado. Todos da enfermagem estavam ansiosos, achávamos que seria uma coisa diferente e hoje (o que se tem) não é o que a categoria esperava. Nós temos muito para consertar e aumentar (os valores) com a PEC 19/2024”, afirmou o presidente do Sindisaúde de Santa Rosa, Lino José Puhl, cuja entidade representa profissionais de 21 municípios da região Noroeste. Puhl destacou ainda que, da forma como está hoje, os valores previstos na lei são para quem realiza jornada mínima de 44 horas semanais. Períodos inferiores, como 40 horas ou 36 horas – como ocorre em Santa Rosa – acabam recebendo menos, de forma proporcional. A Proposta de Emenda à Constituição citada por Lino busca vincular o piso às 30 horas semanais, antiga bandeira de luta da categoria, sem redução de salário e com reposição todo ano. “Mas para isso, todos sabemos, tem de ter custeio e financiamento”, completou. O presidente do Sindisaúde criticou também o comportamento de diversos hospitais, clínicas e outras unidades de saúde que, ao contrário do previsto, ao receberem o complemento enviado pelo Ministério da Saúde para se alcançar o valor mínimo do piso aos profissionais da saúde, descontam imposto de renda, INSS e fundo de garantia antes de fazerem o repasse aos trabalhadores, gerando insegurança jurídica e prejudicando a própria aposentadoria dos profissionais.

“Por princípio, se valoriza quem tem valor. Na enfermagem, em nível nacional, 18% tem curso superior e 70% tem nível médio. É uma mão-de-obra qualificada, e não se acha enfermeiro nem técnico a qualquer momento. Se demora muito tempo para formar. E quando estamos lá na ponta, nas UPAs e nos hospitais, a gente não pode se deslocar de uma UTI para outra neonatal, por exemplo, pois há uma complexidade, exige treinamento, conhecimento e responsabilidade. Então o princípio é ‘o quanto vale, qual o valor que eu dou (ao hospital). O piso tentou valorizar e pagar um salário justo. As deturpações com relação até a chegada dos valores no CPF do trabalhador representam uma desvalorização”, avaliou Ismael Miranda, do Sindicato dos Enfermeiros do RS (Sergs). Miranda também destacou que 70% dos profissionais da enfermagem que se afastam do trabalho por conta de adoecimento, este ocorre por conta de transtornos emocionais, depressão, ansiedade ou síndrome de burnout, que está relacionada ao esgotamento físico, à exaustão extrema e ao estresse, manifestações estas vinculadas a situações de trabalho desgastantes ou com alta responsabilidade. “O cenário lá na frente não é bom. Estamos negociando com os hospitais filantrópicos, via Sindiberf (sindicato patronal), e querem parcelar o financiamento. É preciso que a sociedade, como esta Casa legislativa, abrace a enfermagem, cuide de quem cuida”, apelou.

Caso típico do que vem acontecendo na maioria das unidades de saúde do estado foi exemplificado por Márcio Barbosa, do Sindisaúde de Cruz Alta. Segundo ele, o Hospital cruz-altense Santa Lúcia paga o piso mas desconta os adicionais noturno e de insalubridade. “Hoje, na prática, os trabalhadores do dia e da noite recebem o mesmo salário. Já a Unidade de Pronto Atendimento do município, administrada por entidade de interesse privado ligada à Federação dos Hospitais, desconta FGTS e cota patronal. E isso se repete em diversas localidades do estado. Existem diversos cenários de pagamento de salário, cada região faz de uma forma e os trabalhadores é que acabam sendo prejudicados”, afirmou o dirigente. “Temos, na cidade e região, uma precarização dos serviços de saúde, principalmente na área pública, com falta de recursos humanos, sobrecarga de trabalho e um cerceamento ao direito de se expor”, apontou o vereador de Santa Rosa Régis Machado Bonmann sobre o fato dos trabalhadores evitarem, inclusive numa audiência pública, criticarem abertamente o descumprimento da lei do piso. “Nós sabemos que a nossa função é dar voz a esses profissionais quando estes não podem sequer cobrar, inclusive, o que é seu de direito, que está em lei. E quem se mantém trabalhando está adoecendo, pois a gestão municipal é um exemplo de quem só pensa em números, premiando conforme a produtividade. Ao mesmo tempo temos a ampliação de terceiro turno (no atendimento em saúde) com o mesmo número de profissionais. Os recursos (do Ministério da Saúde) vem para todos os municípios, mas tem gestões, como é o caso de Santa Rosa, que fazem aplicação financeira com esses recursos se baseando em cima da Medida Provisória que diz que o prazo para o repasse ser feito aos prestadores de serviço é de 30 dias. E é inadmissível os profissionais receberem como complemento, além de que aqui temos o piso (que deveria ser o básico) como teto (valor máximo)”, apontou Bonmann.

A mudança nas regras dos royalties da exploração do Pré-sal feitas pelo governo de Michel Temer, em que 75% iriam para a área da Saúde e 25% para a Educação, e a PEC 95, que congelou por 20 anos os investimentos públicos, também foram apontados como golpes mortais no direcionamento de recursos da saúde pública brasileira. “Com isso, se perdeu uma fonte significativa de receita, que seria crescente e ajudaria a financiar a saúde”, apontou Orlando Desconsi, ex-prefeito de Santa Rosa e representante do mandato do deputado estadual Jeferson Fernandes. Ao final do encontro, Valdeci acrescentou que, além de fazer esse debate, a Comissão Especial busca também formatar uma radiografia do que vem sendo aplicado nas principais regiões do estado, trabalho que deverá culminar com a realização de uma audiência pública, de caráter estadual, em Porto Alegre no dia 16 de junho. “Neste encontro buscaremos reunir, aglutinar, afunilar tudo o que conseguimos ouvir, resgatar e registrar durante as audiências em relação ao que foi proposto”, explicou. As informações farão parte do relatório final, com recomendações a estados, municípios, União e aos empregadores para que o cumprimento da legislação, assim como por garantia de condições dignas de trabalho, seja colocado em prática.

A audiência em Santa Rosa foi a oitava, de um total de 12 agendadas. Também deverão sediar os encontros regionais as cidades de Caxias do Sul, Passo Fundo, Porto Alegre e Tramandaí. Desde abril, já foram realizadas audiências em Cruz Alta, Pelotas, Bagé, São Gabriel, São Borja, Cachoeira do Sul e Santa Maria. Juntamente com os debates, também estão sendo feitas visitas técnicas em estabelecimentos de saúde públicos, privados e filantrópicos.

O encontro contou também com a participação dos vereadores Luis Carlos e Osório Antunes dos Santos, da Comissão de Saúde da Câmara de Santa Rosa; dirigentes dos Sindisaúde de Ijuí (José Manoel Morais), e de Santo Ângelo (Idair Machado); e representações do mandato do deputado federal Elvino Bohn Gass, do Sindicato dos Metalúrgicos da região e do Hospital Vida e Saúde.

FUNCIONAMENTO DA COMISSÃO – De acordo com o Regimento Interno do Parlamento gaúcho, a Comissão Especial tem prazo de quatro meses de funcionamento, período em que colhe informações, finalizando sua atuação com a apresentação de um relatório – previsto para agosto próximo – com sugestões e indicativos a gestores públicos, estado e, se for o caso, à própria União tanto para o cumprimento da legislação como por garantia de condições dignas de trabalho.

COMPOSIÇÃO – Além da presidência de Valdeci, o colegiado conta com a vice-presidência do deputado Issur Koch e a relatoria da deputada Patrícia Alba. No total, a Comissão conta com a participação de 12 parlamentares titulares, além dos membros suplentes.

 

 

Texto: Tiago Machado – MTE 9.415 Marcelo Antunes – MTE 8.511 
Fotos: Christiano Ercolani/ALRS

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