quarta-feira, 20 novembro

A redução da disponibilidade de água irá intensificar ainda mais a disputa pela água por seus usuários, incluindo
a agricultura, a manutenção de ecossistemas, assentamentos humanos, a indústria e a produção de energia.
Isso afetará os recursos hídricos regionais, a segurança energética e alimentar,
e potencialmente a segurança geopolítica, provocando migrações em várias escalas.
Os potenciais impactos nas atividades econômicas e no mercado de trabalho são reais e possivelmente graves.
Muitos países em desenvolvimento estão localizados em pontos críticos de tensões relacionadas à água,
particularmente na África, na Ásia, na América Latina e no Oriente Médio.
Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos, 2016.

A política de redução das funções públicas do Estado, estabelecida no final dos
anos 80 pelo famigerado Consenso de Washington, acentuou desigualdades sociais,
quebrou economias na América Latina e Ásia e serviu para atrasar o desenvolvimento,
devido às barreiras fiscais e ao protecionismo dos países ricos. Apesar de seu reconhecido
fracasso, o programa criado pelo Banco Mundial para instalar e fortalecer políticas
neoliberais, continuou na agenda política de diversos países, inclusive no Brasil, até hoje.
Graças a narrativa neoliberal, se naturalizaram concepções sobre o meio ambiente e
os recursos naturais essenciais, estritamente econômicas, utilitaristas e mercantis. Com a
água não foi diferente. Um documento emitido pelo Banco Mundial em 1993, chamado
Integrated Water Resources Management estabeleceu que a água deve ser considerada
essencialmente um bem econômico, subordinado às regras do mercado. Esta concepção
torna cidadãos, simples consumidores, cuja possibilidade de acessar água e serviços de
saneamento, fica circunscrita à possibilidade de pagar o preço definido por seu mercado.
Uma necessidade básica que foi transformada em uma vantagem a ser explorada.
No contexto de aumento da temperatura global, além dos lugares onde já havia
escassez histórica de recursos hídricos, também localidades antes bem abastecidas,
começam a sofrer com a crescente redução da água para consumo. Somado a este
cenário, há ainda os reiterados problemas de poluição e contaminação dos corpos hídricos,
por falta de saneamento. A Organização Mundial da Saúde (OMS), estima que até 2050,
dois terços da população do planeta vão sofrer com escassez de água.
Portanto, além de essencial, a água é cada vez mais um recurso estratégico para
qualquer comunidade, cidade, estado ou país. Assim, garantir o controle e a gestão pública

se torna uma questão central, quando se fala em autonomia, desenvolvimento e
independência. Já há em alguns países, conflitos sendo travados entre comunidades
tradicionais e grandes multinacionais pelo controle e uso de água doce. Em 2020, a Bolsa
do Wall Street tornou a água, pela primeira vez na história, uma commodity, a ser
negociada nos termos do mercado. A busca pelo domínio sobre o que já se tornou o
mercado da água, não é apenas pelo seu uso como matéria-prima, mas sobretudo para
explorar seu valor como um produto básico qualquer, a exemplo dos minérios.
O processo de privatização da água não se dá exclusivamente pelo fim da
exploração do recurso pelos Estados e sua transferência para a iniciativa privada no meio
urbano. O modelo agrícola das grandes monoculturas, assim como o estímulo ao consumo
de carne bovina, que também são commodities, têm contribuído enormemente para a
redução e contaminação de grandes volumes hídricos. Além de motivar, a expansão das
lavouras e pastagens sobre áreas de preservação e de mananciais, com um rastro de
destruição sem precedentes na história. O desmatamento recorde da Amazônia, além da
destruição imediata da biodiversidade, afeta todo o sistema climático do continente e
ameaça a continuidade da produção agrícola, devido ao desequilíbrio do regime de chuvas,
que passa a se tornar excessivo ou insuficiente, por períodos cada vez maiores.

 

Água privatizada: um péssimo negócio

 

Um conhecido estudo do Centro de Estudos em Democracia e Sustentabilidade do
Transnational Institute (TNI), com sede na Holanda, mapeou todos os serviços privatizados
e depois devolvidos ao controle público no mundo entre 2000 e 2019. Eles encontraram a
mesma realidade em 36 países. Uma série de concessões não renovadas, contratos
rompidos e, nesses casos, empresas compradas de volta. A maior parte dos casos de
reestatização acontece nos serviços essenciais como água, energia, transporte coletivo e
coleta de lixo. São 312 cidades que reverteram o processo de venda dos serviços de
distribuição de água tratada e esgoto. O motivo apontado pelo instituto holandês é o fato,
óbvio, das empresas privadas priorizarem o lucro, depois o outro fato é que a entrega dos
serviços contratados é cara e ruim.
Um dos casos mais emblemáticos de privatização da água, a Inglaterra teve seu
serviço de saneamento entregue à iniciativa privada em 1989, pelo governo neoliberal da
primeira-ministra Margaret Thatcher. Lá a estrutura de gestão e do próprio tratamento da
água estavam defasadas e sem investimentos há mais 10 anos. Agora, passados três
décadas, em 2022, a Water Services Regulation Authority (Ofwat), instituição de controle e

fiscalização do setor privatizado dos serviços de água e esgoto em todo o Reino Unido,
alertou para o alto nível de poluição da água, a baixa qualidade no tratamento. Em resumo,
a população com água poluída nas torneiras, inundação de esgoto nas casas e praias
impróprias para banho, enquanto o lucro dos acionistas privados se mantinha intacto e
crescendo. No caso, inglês, como ocorre na maioria dos casos de privatização, a promessa
de entrega de bons serviços, geração de economia para o governo e mais investimentos,
jamais se concretizaram.

Com uma alta concentração de países menos desenvolvidos economicamente, o
hemisfério sul é o preferido de programas conhecidos pelo eufemismo de ajuste estrutural,
o que na prática significa operar a substituição das funções públicas do Estado e abrir
mercado para a iniciativa privada. Talvez um efeito colateral desse modelo foi demonstrar
que o neoliberalismo não prospera sem recursos públicos para vampirizar. Em todas as
grandes crises financeiras mundiais dos últimos 30 anos e podemos lembrar facilmente da
mais recente, a pandemia, foi sempre o Estado que proporcionou o amparo e evitou o
colapso.

O Brasil tem em seu território quase 14% de todo o volume de água doce do
planeta, dividido em doze grandes bacias hidrográficas, quase todas localizadas na Mata
Atlântica, junto com a maior área úmida continental do mundo no Pantanal mato-grossense
e a mais extensa floresta alagada do mundo, a Amazônia e ainda assim tem problemas
hídricos. A soma da exploração desregrada, com a despreocupação com os mananciais, a
má distribuição, a poluição e o desmatamento, sabotam a disponibilidade hídrica e não
garantem água potável, tampouco o saneamento básico.

Fixado pela Lei nº 14.026/2020, o Marco Legal do Saneamento foi estabelecido para
atrair capital privado para explorar o então aberto mercado do saneamento no Brasil. A
justificativa é de que, atualmente, o setor público detém aproximadamente 94% das
empresas de tratamento de água e esgoto no país e não dá conta. Também há uma
estimativa de que seriam necessários cerca de R$ 500 bilhões para que se atingisse a
universalização do sistema.

Entretanto, não há nenhum elemento garantindo que a transferência dos serviços
para a iniciativa privada traga solução, principalmente para as comunidades periféricas e de
menor renda. Se é bom negócio para o empreendedor privado, essas vantagens não se
traduzem em benefícios diretos à população, que em geral passa a pagar mais caro e a
receber tratamento diferenciado conforme sua localização na cidade. Para piorar, as
chamadas agências de regulação têm se mostrado mecanismos ineficientes na hora de
fiscalizar e sobretudo na aplicação de multas por má-prestação dos serviços. As parcerias
público-privadas (PPPs) têm repassado mais os riscos dos empreendimentos e das
concessões, do que as vantagens para a população. O grande problema é que o esse lucro

que é sempre garantido pode representar a falta de acesso de um grande número de
pessoas a um elemento essencial à própria sobrevivência.
Outra consequência nefasta da privatização dos serviços de água e esgoto são os
problemas de saúde agravados pela baixa cobertura, falta de investimento na rede e o
preço da tarifa. Se a água tratada não chega, as pessoas vão em busca de qualquer água
que eles puderem ter acesso. Como acontece nos Campos Elíseos, na Região
Metropolitana do Rio de Janeiro, onde a comunidade utiliza água de uma adutora
construída para uso industrial. Água não tratada para consumo humano. Quem vai arcar
com os custos para tratar surtos de doenças infecciosas é o sistema de saúde pública, não
é a empresa que comprou a concessão para distribuição de água tratada e não aportou o
serviço.

Os dados parecem demonstrar, no entanto, uma reversão no quadro de privatização
dos serviços essenciais, dada a péssima experiência com a iniciativa privada, porém há
bolsões anacrônicos ainda apostam em soluções dogmáticas para ocupar o lugar o estado,
mesmo sem responder a altura.

 

Corsan: o caso do RS

Ainda que estudos demonstrem o fracasso absoluto da privatização dos serviços de
distribuição de água tratada e esgoto, como já afirmei acima, sobrevivem bolsões com um
delay político, onde ainda funciona a orientação neoliberal ditada lá no final dos anos 80. É
o caso do RS, onde justamente essa agenda foi responsável por quadruplicar a dívida
pública, reduzir drasticamente a presença do Estado no aporte de serviços e infraestrutura
estratégica para atração de investimentos privados. Mesmo com essa péssima experiência
doméstica, sucessivos governos de direita, tem a cada gestão, concentrado mais e mais
esforços em negociar patrimônio público do que em desenvolver uma política de
desenvolvimento, capaz de tirar o Estado da depressão econômica.

Criada em 1965, pelo governador conservador Ildo Meneghetti, a Companhia
Riograndense de Saneamento (Corsan) é uma sociedade de economia mista sob o controle
estatal, que presta serviços de abastecimento de água e de esgotamento sanitário em 317
municípios, atende aproximadamente 6,3 milhões de pessoas ou cerca de 97% da
população, fatura mais de R$ 3,3 bilhões por ano e possui 5.995 trabalhadores e
trabalhadoras em seus quadros.

A companhia está na agenda de privatização há quase 30 anos, tendo efetivamente
encaminhado o início do seu processo de venda de capital, a partir de 2021, quando o

governador Eduardo Leite (PSDB), eleito prometendo não vender a estatal, descumpriu sua
própria palavra e realizou a primeira tentativa de alienar seu controle, transferindo à
iniciativa privada. Com maioria na Assembleia Legislativa, Leite garantiu a venda via Lei
estadual 15.708/2021. Sem comprador para ações, Leite resolveu colocar 100% do capital
da empresa à venda. O leilão vencido pelo consórcio de empresas que formam a Aegea,
adquiriu a Companhia em lote único em valores que somam R$ 4,1 bilhões. Desde o início,
o próprio valor negociado foi alvo de questionamentos pelo Sindicato dos trabalhadores e
trabalhadoras das Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e Serviços de Esgoto do
RS (Sindiágua) que representa os trabalhadores da empresa. O leilão das ações foi
contestado e o processo de alienação das ações do governo foi suspenso por decisão do
Tribunal de Contas do Estado (TCE/RS). Segundo informações dos próprios trabalhadores
da estatal, a Aegea já estava prestando serviços à Corsan e portanto, teve acesso a
informações privilegiadas que podem ter beneficiado o consórcio na operação de compra.
O processo de privatização continua cercado de incertezas e irregularidades. O
Tribunal de Contas segue exigindo documentos que comprovem prejuízos aos cofres
públicos e provas de danos aos 317 municípios que contrataram a Corsan, bem como aos
usuários dos serviços. A representante do Tribunal determinou ainda, sob pena de
instalação de um novo processo, que o Executivo gaúcho e a estatal “se abstenham de
praticar atos de comunicação com a empresa adquirente que possam caracterizar
antecipação da transferência do controle à iniciativa privada. Desde o início de 2023, os
órgãos de fiscalização têm apontado problemas no negócio. O Tribunal Regional do
Trabalho da 4ª Região (TRT-4), exigiu, via liminar, a elaboração de um estudo sobre
impacto socioeconômico, trabalhista, previdenciário e social, como premissa para a
assinatura do contrato de privatização da estatal.

O Ministério Público de Contas (MPC) reconheceu a possibilidade de informação
privilegiada para um único participante, caracterizando concorrência desleal. O alerta foi
feito próprio Sindiágua e pelo Sindicato dos Engenheiros do RS (Senge/RS) que apresentou
um Relatório de Avaliação Econômico-Financeira onde demonstra, além da informação
privilegiada, o subfaturamento da empresa para venda, onde “o valor econômico da
Companhia atinge a cifra de R$ 7,26 bilhões em função do fluxo de caixa projetado para o
futuro e trazido a valor presente”, descontado o fluxo de caixa. No parecer o procurador-
Geral do MPC, Geraldo Da Camino solicitou retirada dos sigilos do processo de privatização
da estatal. Também houve uso indevido de documentos preliminares do TCE e do Tribunal
de Justiça do RS para antecipar decisões dariam continuidade da venda da Companhia,
mesmo com as ações judiciais em curso. Deputados do Oposição denunciaram que a
Aegea foi autorizada pelo presidente da Corsan, Roberto Barbuti a atuar dentro da estatal
como se já fosse a dona da Companhia, ignorando as liminares da Justiça e do TCE.

O pedido de demissão do presidente da Agência Estadual de Regulação dos
Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul (AGERGS), sob alegação de desmonte
da agência que controla a qualidade dos serviços privatizados no Estado, acrescentou mais
um elemento que corrobora com o ambiente sombrio e nada transparente que cercou a
venda da estatal.

 

Porto Alegre na mira da privatização da água

Se nas experiências de desestatização registradas até agora, a iniciativa privada se
mostrou não afeita à transparência em suas operações, ao assumir a gestão, uma das
primeiras medidas é a troca servidores de carreira por terceirizados, em geral, menos
qualificados. Na sequência, os investimentos previamente anunciados não são cumpridos e
finalmente, o custo final ao usuário fica mais alto. Os serviços quando públicos, ao contrário,
tem gestão social para garantir acesso universal, revertem o lucro em investimentos,
assumem a responsabilidade diante das demandas e garantem tarifa módica.

É o caso do Departamento Municipal de Águas e Esgoto (DMAE), autarquia pública
que há 61 anos leva água a todas as regiões da capital gaúcha. Porto Alegre trata 80% do
esgoto graças à capacidade técnica e financeira do Departamento. Só não avançou mais
por decisão política do grupo que administra a cidade há 18 anos e concentra esforços
exclusivamente em abrir mercado à iniciativa privada. Com uma política de bloqueio de
investimentos, o Departamento, que já foi premiada internacionalmente por seu papel social
e humanitário, perdeu 887 servidores nos últimos 12 anos, cujas funções foram substituídas
por contratos de terceirização. A autonomia do órgão também foi abolida, o que deixou
evidente a intenção de vender a estatal.

A disposição do prefeito Sebastião Melo (MDB) em abrir mão, por 30 anos, da
coleta e tratamento de esgoto, distribuição de água e gestão comercial, mantendo apenas a
coleta e o tratamento da água públicos, tem como argumento o Marco Legal do
Saneamento. Na prática, era o elemento que faltava para autorizar o prefeito a entregar a
gestão da água tratada e do saneamento Porto Alegre.

Talvez a capital gaúcha seja, ironicamente, o último bastião das políticas neoliberais
ortodoxas, que não deram certo em lugar em nenhum e contrariam qualquer evidência que
fuja do seu modelo. Um exemplo disto, é que o DMAE, mesmo esfacelado e com os
recursos para investimentos bloqueados ou desviados para outras funções, ainda assim é
superavitário e mesmo assim, sua venda é mantida.

Se a preocupação central hoje da maioria das comunidades desenvolvidas é pelo
esforço mundial do cuidado com o meio ambiente e os recursos naturais, cuja

transformação em mercadoria já trouxe enormes prejuízos ao planeta, não há espaço,
tampouco vontade popular para impor a Porto Alegre ou ao Rio Grande do Sul tamanho
retrocesso, ao transformar serviços públicos em oportunidade de negócios. Ainda mais com
o tema mais estratégico do século 21, que é o controle público do mais importante recurso
natural disponível.

 

 

Artigo da deputada Sofia Cavedon, presidenta da Comissão de Educação, Cultura, Desporto, Ciência e Tecnologia da AL/RS publicado em

https://diplomatique.org.br/uma-politica-das-aguas-para-o-seculo-21-passa-pela-reestatizacao/

 

 

 

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