Um visionário do saneamento básico

Raquel Wunsch

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Artigo
Dieter Wartchow (Foto: Maia Rubim/Sul21)

Jeferson Fernandes (*)

Os estados estão colocando em prática os ditames da lei 14.026/2020, de autoria do governo Bolsonaro, via regionalização da gestão do Serviço de Abastecimento de Água – SAA e o Serviço de Esgotamento Sanitário – SES, alterando a realidade de todos os 5.570 municípios brasileiros. Conhecida como novo marco do saneamento, essa lei prevê uma meta de 90% do tratamento do esgoto sanitário e 99% de fornecimento de água em todo o país até 2033, prorrogável até 2040.

A pergunta que se faz é: Bolsonaro e Leite aqui no Rio Grande do Sul, abriram os olhos para esse tema tão importante e vão promover investimentos para melhoria da qualidade de vida do povo? A resposta você mesmo poderá dar ao ler as informações que trago nesse artigo, inspirado na obra “Cooperação no Saneamento Básico” (2013) do saudoso doutor em Engenharia pela Universidade de Stuttgart, Alemanha, Dieter Wartchow.

Na referida obra, Dieter dizia da necessidade de “prevenir doença, prolongar a vida e promover saúde e eficiência física e mental, através de esforços organizados da comunidade para o saneamento básico (…)”. Também lembrou que a ONU considerou a “água tratada como um direito de todos”. Na sequência, alertou que o Brasil possui de 12 a 15% da água própria para o consumo do mundo, sendo que somos 2,7% da população mundial. “Isso põe o país no alvo de grandes corporações mundiais” (p.29).

Ao contar como o controle sobre o gerenciamento da água se deu ao no RS e no Brasil, parece que ele estava prevendo o momento atual. Lembrou que em Porto Alegre, por exemplo, duas empresas privadas forneciam água durante a segunda metade do século XIX, o que não deu certo. E, devido aos constantes protestos, o município assumiu os serviços no início do século XX.

Com o passar do tempo, os governos militares (1964-1981) trabalharam forte para acabar com as empresas municipais de saneamento, porque isso gerava muitos recursos para os cofres locais e consequente poder aos prefeitos. Para viabilizar esse intento, financiaram a criação de várias empresas estaduais via Plano Nacional do Saneamento – PLANASA, como foi o caso da Corsan em 1965. “A justificativa era a de que a abrangência regional dos serviços permitiria a obtenção de ganhos em escala. Ao mesmo tempo, a implementação do subsídio cruzado (tarifa única) garantiria a inclusão dos municípios mais pobres” (p.20 e 21).

Dieter conta que a União chegou a destinar 0,5% do PIB na década de 1970 para financiar o SAA e SES, via, principalmente, recursos do FGTS (80%), que caiu para 0,2% do PIB na década de 1980 e para apenas 0,1% na década seguinte. Na medida que o governo federal abandonava o setor, foram apresentados nove projetos entre Senado e Câmara Federal na tentativa de regulamentar o saneamento básico do país. Em 1999, o Governo Fernando Henrique Cardoso – PSDB, comprometeu-se com o Fundo Monetário Internacional – FMI a abrir ao capital privado à exploração dos serviços de água e esgoto, atendendo à orientação de um estudo do Banco Mundial, intitulado “Água e esgoto no Brasil: Uma avaliação da regulação” (p.28).

Portanto, o constante na lei 14.026/2020, de direcionar recursos públicos somente para a visão de quem está no poder em Brasília não é estratégia nova. Lembra o que já fora feito no período militar via PLANASA e com FHC via outros mecanismos. O governo FHC, por exemplo, via PL 4.147, dava preferência ao financiamento de obras de saneamento aos municípios que privatizassem o SAA e SES. A resolução nº 2.444 do Conselho Monetário Nacional, de 17/11/1998, vetou a utilização de recursos do FGTS para o saneamento básico, gerenciado por entidade pública. A Resolução nº 78/1998, do Senado Federal, também restringiu as condições de crédito a Estados e Municípios para os investimentos na área do saneamento. Tudo isso, para seguir à risca os ditames do FMI, a exemplo do que acontecia na Grécia, a qual depois quebrou.

O Dieter provou que os países que haviam privatizado o SAA e SES, tais como Argentina, Bolívia, França e Inglaterra, tiveram preços exorbitantes nas tarifas e descumprimento dos contratos que estipulavam investimentos em tratamento de esgotamento sanitário. Ele comemora o fato de a partir de 2007 o Brasil passar a contar com um marco regulatório do saneamento, lei 11.445, prevendo investimentos em SAA e SES, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos, bem como drenagem e manejo de águas pluviais urbanas. Destaca a importância de haver previsão de agências reguladoras, desde que sem “politização”.

No que diz respeito aos novos contratos feitos por vários municípios com a Corsan à luz da lei 11.445/2007, o autor comemora o estabelecimento de metas até então não existentes da Corsan para com os seus contratantes. Aliás, ele descreve com riqueza de detalhes os bons exemplos de Santa Rosa e Ijuí, por exemplo, em termos de ganhos contratuais para os moradores dessas cidades e torcia que a mesma qualidade de contratos se desse em outras localidades estado a fora, o que em boa medida se confirmou.

Ao mesmo tempo, não se furtou de criticar o processo de privatização experimentado por Uruguaiana, a partir de 2009, o que gerou perdas de investimentos públicos federais (a fundo perdido) ao município, na monta de R$ 64 milhões e a obrigação de indenizar a Corsan que ficou para o Município.

No que diz respeito às vantagens aos usuários do saneamento, fica evidente a sua simpatia por empresas locais. Citou os casos de Bagé e de Novo Hamburgo que encamparam os serviços em 1998, onde passaram a ser garantidas tarifas mais baixas do que as praticadas pela Companhia Estadual de Saneamento e índices mais significativos de tratamento do esgoto sanitário.

Outro tema enfrentado pelo Dieter é a “face do equilíbrio econômico financeiro” na prestação do SAA. “Todas essas questões financeiras se apoiam na expressão do equilíbrio econômico financeiro cujas fórmulas não são transparentes” (p.54). Considera isso uma injustiça com quem paga as tarifas e lamenta que órgãos de controle não tenham aprofundado e colocado ao público a análise dos dados, embora faça referências positivas do papel desempenhado pelo Tribunal de Contas do Estado nos processos de tentativa de privatização em municípios missioneiros, como São Borja e São Luiz Gonzaga.

Faz uma crítica à gestão da Corsan dizendo que a diferença entre o arrecadado e o gasto na empresa não volta para o saneamento. À época, R$ 200 milhões ao ano (p. 79). Chega a afirmar que o que se arrecada com SAA “pode financiar toda infraestrutura de esgoto, da drenagem pluvial e de resíduos sólidos (…)”. Isso é importante para o debate atual porque em boa medida também coloca em cheque o chamado subsídio cruzado. Mesmo pequenas cidades, pagando as mesmas tarifas de água que os maiores, podemos concluir, mesmo que empiricamente, a partir dessa abordagem, que são superavitários.

A partir das lições desse grande mestre no saneamento básico, concluo que estão certos os prefeitos municipais ao não aceitarem assinar os “aditivos” aos contratos com a Corsan, renovando os mesmos por 41 anos, sem que se saiba quem vai comprar a Companhia e assim, prestar os SAA e SES. A titularidade sobre esse serviço estratégico deve ser honrada e é a partir do nível local e regional que deve ser feito o plano de saneamento e obrigar empresas públicas ou privadas a cumprir metas, mantendo tarifas módicas às usuárias do sistema.

Há de se cobrar o governo do estado que a Corsan não abra mão dos recursos recolhidos na forma de tarifas para o caixa único, como fez ao longo de sua história e que sejam investidos no tratamento do esgoto sanitário, com base em planejamento e gestão. Que a empresa aproveite a restituição de R$ 1,4 bilhão a serem pagos pela União dos impostos indevidamente pagos, que cobre financiamento a juros subsidiados do BNDES, assim como estão ofertando para empresas privadas do setor, a fim de poupar a população gaúcha de mais uma exploração no seu bolso.

Por outro lado, que os municípios que têm sistemas próprios, que sejam respeitados na sua autonomia de buscar as alternativas que entenderem pertinentes, em termos de alcance de metas de tratamento de água e esgoto. Se assim for, o RS vai ganhar em qualidade de vida sem onerar quem paga pelo serviço. Se tudo for privatizado, somente a rentabilidade das ações nas bolsas de valores é que importarão e a gauchada poderá estar sendo privada de usufruir da água que dispõe na superfície e no nosso subsolo.

(*) Deputado Estadual (PT/RS), presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Água Pública

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